Julio Mesquita
Jorge Caldeira (*)
A Guerra (1914-1918), de Julio Mesquita, 4 volumes e em CD-Rom, co-edição O Estado de S.Paulo/Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2002; <www.terceironome.com.br>, telefone (11) 3483-0333
Julio Mesquita foi responsável por uma grande revolução: a implantação do jornalismo moderno no Brasil. Para fazer isso, realizou uma obra extraordinariamente complexa, que exigiu sucesso em várias frentes ao mesmo tempo. Ele precisou ser bem-sucedido como político, empresário, jornalista e comandante de um jornal. Eram exigências muitas vezes contraditórias, e esta situação exigiu dele alguns sacrifícios. O maior deles foi o de não ter uma obra pessoal reconhecida, algo que a publicação deste livro finalmente ajuda a começar a sanar.
Nascido em Campinas, em 1862, tornou-se jornalista profissional em novembro de 1888, quando foi contratado como gerente do jornal A Província de S. Paulo. Fundado por pessoas ligadas ao Partido Republicano Paulista, vendia 4 mil exemplares diários, disputava a liderança do mercado local, e era praticamente desconhecido fora da região onde circulava. Em 39 anos de atividade, Julio Mesquita conseguiu se tornar dono da publicação onde começou como funcionário, transformar O Estado de S. Paulo numa publicação de importância nacional e montar o maior parque gráfico ao sul do equador. No momento de sua morte, em 1927, a tiragem chegara aos 60 mil exemplares diários ? num tempo em que São Paulo tinha 570 mil habitantes, mais da metade dos quais analfabetos.
Sob seu comando, portanto, aconteceu a transformação de um órgão destinado a um grupo relativamente limitado de leitores com interesses políticos em outro que falava a uma sociedade complexa. Esta mudança no sentido da atividade de fazer jornais vinha ocorrendo no mundo desde a segunda metade do século XIX ? mas apenas Julio Mesquita foi capaz de introduzi-la no Brasil. Aqui, os obstáculos para a mudança foram grandes, apesar da existência da maioria das condições necessárias para o salto.
A imprensa brasileira dos tempos iniciais do Império podia ser considerada das mais avançadas de seu tempo. Naquele momento, praticamente todos os jornais do planeta tinham as mesmas características: eram de propriedade de políticos e extremamente partidários ? defendiam ardorosamente o governo, quando seu proprietário fazia parte dele, e o detratavam como podiam, nos momentos em que estavam na oposição. Isto era um progresso: o jornal surgiu com a luta eleitoral e a democracia, como um instrumento para convencer eleitores. E seu partidarismo não se limitava às idéias. Era norma da época em todo o mundo que o jornal, no momento em que seus proprietários estavam no poder, tivesse como maior fonte de renda os cofres públicos, através de subsídios diretos ou de contratos de serviço vantajosos.
O Brasil imperial tinha eleições regulares e um sistema eleitoral dos mais abertos do mundo ? pois naquela época o número de eleitores, mesmo nos Estados Unidos ou na Inglaterra, representava apenas uma pequena fração da população total. Era um sistema bastante fechado, o que transformava o jornal num veículo que circulava apenas na elite. Só se comprava um exemplar por assinatura, a um preço relativamente elevado, e se considerava quase uma afronta a idéia de fazê-lo circular nas ruas. Enquanto as coisas foram assim, o jornalismo brasileiro podia ser comparado em pé de igualdade ao dos maiores centros do mundo, mesmo quando se pensava na quantidade vendida ? geralmente em torno de 2 mil exemplares.
A partir da década de 1840, a situação mudou radicalmente. A revolução começou em Nova York, quando Benjamin Day lançou o The Sun. Em vez de buscar a elite, o jornal era feito especialmente para ser vendido nas ruas. Tinha menos páginas e ligava pouco para a possibilidade de ganhar dinheiro com cartadas políticas. Pelo contrário, vendia algo que era pouco compreendido na época: relatos de acontecimentos que julgava importantes para cidadãos comuns. A forma de vender também era nova: vendedores de rua, que apregoavam as notícias mais importantes. Quando os concorrentes começaram a prestar atenção à novidade, o Sun já vendia 19 mil exemplares diários, mais que a soma de todos eles reunidos. Estava feita a revolução ? e a separação no ritmo do progresso do jornalismo brasileiro em relação aos países desenvolvidos.
O jornal em que Julio Mesquita foi trabalhar tinha quase tudo do jornalismo partidário: defendia as idéias republicanas, era feito por jornalistas que militavam no partido, circulava na área de influência do partido. Mas tinha já algumas diferenças fundamentais. Desde o momento de sua fundação, em 1875, todos os envolvidos no projeto sabiam que não poderiam alimentar qualquer esperança próxima de receber dinheiro público ? e esta era a fonte financeira mais importante para o jornalismo partidário, sua principal razão econômica. Por isso, montaram uma empresa com certa solidez, e trataram de matizar o partidarismo do jornal ? tentaram desde cedo conquistar leitores não pela concordância política, mas pela qualidade do noticiário que ofereceriam. Tinha de ser assim, porque só podiam sobreviver com leitores e anunciantes.
Ainda assim, o corte político era fundamental no jornal ? e Julio Mesquita se trajava por este molde. Filho de um comerciante português imigrado na metade do século, sofreu de perto a influência republicana, que era forte em Campinas. Tal influência não era apenas eleitoral, mas se estendia a vários aspectos da vida da cidade. Ele estudou no colégio Culto à Ciência, fundado pelos republicanos locais, onde o currículo era bastante diferente do ramerrão imperial, feito mais de catecismo que de preparação prática. Teve como professor de história Francisco Rangel Pestana, o primeiro diretor de redação do jornal. A diferença de preparo se fez notar: com apenas 15 anos de idade foi aprovado na Faculdade de Direito de São Paulo.
Entrou no curso já como republicano convicto, e saiu dele como um republicano radical. Além de participar dos grupos de discussão (no Clube Republicano Acadêmico, era colega de Alberto Salles, Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Pedro Lessa e Afonso Celso, todos políticos republicanos importantes) e da confecção de pequenas publicações partidárias, freqüentava a Charutaria Kling, onde se reuniam os abolicionistas mais radicais da cidade, organizadores do grupo dos Caifazes, que promovia rebeliões em senzalas, enfrentava capitães-do-mato, escondia os foragidos e dava proteção jurídica a tudo isso. Mas Julio Mesquita não limitava seus interesses à política. Adorava literatura, o que, para um radical como ele, naquele momento, significava tomar posição a favor do realismo e de uma forma de narrar na qual a moral não estava no centro da construção do texto; Eça de Queirós era o modelo, e Machado de Assis ? antes de se tornar um mestre realista ?, seu detrator no Brasil. Também gostava muito de teatro, uma paixão de vários de seus colegas de república, e de significado amplo: volta e meia, a casa se enchia de atrizes em festas que duravam até o último centavo de todos.
Instância mediadora
Os pendores boêmios, e mais um conjunto formado por cabelos claros, olhos azuis, bom humor e um otimismo jovial ajudavam, e muito, a atenuar seu radicalismo político. Nas reuniões republicanas, falava sempre em revoluções, jamais em evolução. Seu primeiro discurso entre membros do partido, num banquete em Campinas realizado em 1882, quando tinha vinte anos, pregava a luta revolucionária como a forma adequada para dar fim a uma "dinastia corrupta". A peça revolucionária foi publicada da Gazeta de Campinas. Mas a ela logo se somaram outras, mostrando aspectos diversos de sua personalidade: um conto romântico adolescente do admirador dos realistas e uma reportagem sobre a morte e o enterro de Luís Gama, líder maior dos Caifazes.
Em apenas um dia de 1884, Julio Mesquita viveu três mudanças importantes. Retirou seu diploma na Faculdade de Direito, casou-se com Lucila Cerqueira César (filha de José Alves Cerqueira César, então o principal dirigente republicano paulista e acionista de A Província de S. Paulo) e mudou-se para Campinas, onde se instalou como sócio de um escritório de advocacia. Um ano depois já era pai, vereador (o mais votado da cidade) e estreava como editorialista convidado no jornal paulistano, para realizar uma obra que parecia o oposto de suas idéias. No final de 1884 voltou para São Paulo, para acompanhar o nascimento de sua primeira filha. O evento, no entanto, coincidiu com uma eleição em que, aproveitando-se de pleitos em dois turnos, os republicanos fizeram um acordo com os conservadores, no segundo turno, e elegeram dois deputados federais.
O acordo provocou celeumas, pois significava uma aliança com os maiores adversários. Naquele momento, poucos republicanos, especialmente os radicais, tinham coragem de falar abertamente no assunto. Mas não Julio Mesquita, que iniciou em janeiro de 1885 uma série de editoriais no A Província de S. Paulo intitulada "Os Partidos Políticos e as Transações", na qual defendia a negociação com um argumento sólido: "Precisávamos lançar mão de todos os meios dignos para eleger um representante nosso. A monarquia entendeu que deveria transigir conosco. Aceitamos a transação. Por meio dela triunfou a verdade do sistema representativo, porque vamos ser minoria no Parlamento ? nós que somos minoria no país. Cumprimos um dever de democratas". Os artigos já revelavam outra de suas características pouco comuns: a de manter posições muito avançadas e reconhecer, ao mesmo tempo, a limitação de seu alcance, que exigia negociar com os setores majoritários. Com os editoriais, mostrava que não confundia as duas coisas.
Com esta combinação de realismo e radicalismo ele conseguiu, ao mesmo tempo, tornar-se um respeitado líder dos republicanos radicais ? o que significava, naquele momento, lutar com todas as formas contra a escravidão e pregar uma mudança revolucionária no regime político ? e um sensato vereador e advogado, preocupado com as questões da cidade e os interesses de seus clientes. Foi então que se revelou um problema que limitaria suas atividades: uma doença pulmonar, que o obrigaria a freqüentes interrupções de suas atividades. A primeira aconteceu em 1886, curada com uma viagem à Argentina. No ano seguinte, quando começava a ter um papel decisivo na adoção de suas idéias por todo o partido (pois os abolicionistas e os revolucionários eram uma ala minoritária até então), uma nova crise o obrigou a parar por mais de um ano, quando viajou para Portugal.
Com esta experiência de vida, na qual a política ocupava muito tempo e o jornalismo era apenas um aspecto secundário de sua atividade, ele assumiu o cargo de gerente do jornal quando retornou ao país. Para a imensa maioria das pessoas que viveram situação semelhante no século XIX, o emprego era visto como uma oportunidade de aumentar a influência política ? pois esta, afinal, era a razão de ser do jornalismo partidário. Mas Julio Mesquita, mesmo com uma experiência bastante limitada em jornalismo até aquele momento, desde o primeiro dia entendeu as coisas de outra forma. A partir do instante em que se tornou gerente, seu nome praticamente desapareceu das páginas do jornal. Nem mesmo no expediente aparecia ? e esta ausência vinha a ser, justamente, a marca mais visível de uma imensa mudança.
Ao apagar seu nome, ele estava invertendo a ordem dos fatores de um modo como ninguém havia feito na imprensa brasileira até então. No jornalismo partidário, a proposta do grupo político era o bem mais importante, e os políticos ligados ao grupo, as pessoas mais importantes. Esta ordem de fatores determinava o andamento da cobertura: ela era positiva quando os ventos favoreciam o grupo, e negativa quando o poder ficava mais longe dele. Como a própria denominação indica, a parte tinha prioridade absoluta sobre o todo.
Desde o começo, Julio Mesquita tinha uma explicação para seu comportamento atípico: para ele, um texto sem assinatura valia muito mais que outro assinado; enquanto este último trazia sempre uma opinião pessoal, o anonimato permitia construir textos que fossem de uma instituição, e por isso mesmo mais valiosos. Representariam o jornal todo, não apenas um de seus membros. Este era um argumento difícil de aceitar para a imensa maioria dos jornalistas e articulistas da época. Mas se tornava muito difícil argumentar contra a idéia quando ela vinha do próprio diretor. Por isso, a idéia acabou sendo aceita, com todas as importantes implicações que trazia consigo.
Uma delas era a de que todos os textos do jornal deveriam se submeter a uma norma única de gramática e estilo, imposta por profissionais especializados. Nem mesmo os textos dele escapavam desta regra, sendo sempre submetidos à revisão antes da publicação. Mesmo quando eventualmente discordava de alguma norma, ele a seguia. A imposição desta situação levou a uma outra: a definição do texto jornalístico como algo próprio, que não se confundia nem com artigos nem com o material que deveria merecer publicação em livro. Eram textos especificamente montados para serem lidos no dia, e não deveriam merecer qualquer preocupação com a posteridade. Destinavam-se apenas a informar pessoas.
Todo este conjunto indicava uma outra missão para a atividade jornalística. O espaço central da cobertura deixava de ser a relação entre o universo da direção dos negócios públicos e a sociedade, para se concentrar naquela entre o jornal e seus leitores. No lugar da luta eleitoral, o mercado passava a ser a instância mediadora mais importante. Começava, no Brasil, a revolução que já acontecera trinta anos antes nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Precisão na cobertura
Tanto quanto era inovador ao se posicionar como jornalista, Julio Mesquita foi inovador ao tratar do agora privilegiado aspecto do mercado ? aliás, o mais específico de sua posição inicial na empresa, a de gerente. No jornalismo partidário, era absolutamente comum que uma mesma pessoa se encarregasse dos vários aspectos do negócio. Todos eram editores, repórteres, vendedores de anúncios e tipógrafos ? atuavam um pouco em cada área. O cargo de gerente indicava uma responsabilidade pela administração do negócio, que jamais impediu uma participação muito importante na vida da redação. Julio Mesquita, enquanto exercia esta influência na redação com seu anonimato, promovia uma grande mudança nos aspectos comerciais do negócio.
Enquanto a prioridade de um jornal fosse se agüentar na oposição para forrar as burras no poder, as boas tiragens eram um aspecto secundário do empreendimento, demonstrando mais a influência política do grupo que a saúde do negócio. Neste sentido, valia a pena ser leniente na cobrança de assinaturas: mais leitores significavam essencialmente mais cacife político, e mais cacife político, mais chances de cobrar do Tesouro na hora da vitória. Na nova realidade, menos que instrumentos, os leitores e anunciantes passavam para o centro das preocupações. Era necessário criar tanto o hábito da leitura quanto o do pagamento pelos serviços prestados pelo jornal.
Assim que entrou no jornal, Julio Mesquita atacou de frente a primeira face do problema. Embora A Província de S. Paulo tivesse sido o primeiro jornal da cidade a empregar vendedores de rua ? desde 1876 tinha os seus, o primeiro dos quais foi um francês que apregoava o produto do alto de um burro e tocando berrante, figura que aparece em seu ex-libris ?, estes tinham uma função quase marginal no faturamento da empresa. Três semanas depois de tomar posse, no entanto, Julio Mesquita aproveitou um evento político trágico ? a morte de alguns populares numa manifestação republicana reprimida pela polícia ? para lançar uma campanha: doar a receita das vendas avulsas de uma edição para as famílias das vítimas. Neste dia, a redação se encheu de voluntários para a tarefa de vender jornais; no final da tarde, haviam sido vendidos 9 mil exemplares, numa publicação que nunca imprimira mais de 4 mil.
Mais que tudo, a venda nas ruas tinha o efeito de criar um novo público, anônimo e não dependente de relações partidárias. Não demorou muito para que este público se tornasse importante na vida do jornal. Era um público incerto, que comprava um exemplar quando havia algo que julgava muito importante, e deixava de lado o hábito no dia seguinte. Por causa deste comportamento, não era exatamente bem atendido, até a chegada de Julio Mesquita. Sob sua gerência, este público passou a ser tratado com cuidado e os resultados logo apareceram. A tiragem começou a flutuar de acordo com a importância das notícias ? havia dias em que se vendiam até 800 exemplares nas ruas, 20% a mais que a média diária ? e isto levou tanto a um aumento do faturamento como, principalmente, ao cuidado na apresentação do jornal.
Foi preciso um bom tempo de investimento neste aspecto para poder atacar o segundo problema. Quando assumiu o jornal, Julio Mesquita encontrou uma média histórica de 45% de inadimplência entre assinantes ? e esta era uma das mais baixas da cidade, num momento em que os leitores não estavam no centro da preocupação de jornais políticos. Somente oito anos depois de assumir ele foi capaz de cortar assinaturas dos que não pagavam ? e de anunciantes que faziam o mesmo ?, acabando com o último resquício administrativo do jornalismo partidário. Quando conseguiu fazer isso, já tinha feito opções de extrema importância.
O período inicial de implantação do jornalismo moderno coincidiu com a ascensão ao poder do grupo fundador do jornal ? e este momento era o sonho de todos os políticos, especialmente quando se ligavam a jornais. Com a proclamação da República, a lista de acionistas e jornalistas mudou de qualidade na mesma velocidade com que o novo regime obrigou a uma troca de nome da publicação, que passou a se chamar O Estado de S. Paulo. Esta lista passou a se confundir com a do comando político do país. Incluía nomes como Campos Salles (ministro da Justiça do governo provisório), José Alves Cerqueira César (um dos integrantes do triunvirato que governava São Paulo, e logo em seguida governador), Francisco Rangel Pestana (que deixou a direção de redação para fazer o projeto da Constituição republicana e logo em seguida se elegeu governador), Américo Brasiliense (governador de São Paulo), João Tibiriçá Piratininga (deputado, senador e governador de São Paulo), Francisco Glicério (deputado e senador).
O próprio Julio Mesquita ? que jamais abandonou o gosto pela política ? não escapou da transformação. Foi secretário do primeiro governo republicano paulista, deputado estadual, deputado federal, senador estadual (na República Velha os estados tinham um senado). Ele jamais deixou de participar da vida partidária, até o último de seus dias. E, no entanto, fez tudo isso invertendo prioridades. Enquanto muitos de seus correligionários eram cada vez mais políticos e cada vez menos jornalistas, ele percorreu o caminho inverso. Assim que pôde ? seis meses após a mudança do regime ?, colocou a direção do jornal no centro de suas atividades e a política como uma atividade secundária, embora jamais deixasse de ser um líder político reconhecido.
A complexa mistura que realizou entre estes elementos contraditórios foi exemplar. Para o líder político, nada melhor que ter um jornal nas mãos, capaz de levantar seu nome e torcer a realidade sempre a seu favor. Para um jornal moderno, não existe norma mais abstrusa do que esta. No caso de Julio Mesquita, a completa ausência de seu nome nos artigos assinados representou uma prioridade clara para o jornal: a precisão da cobertura era mais importante que a posição pessoal do dono. Porém, muito mais importante que o aspecto editorial, era o econômico. A hora de ocupar o poder coincidia com a oportunidade de faturar um bom dinheiro público.
Neste aspecto, o comportamento de Julio Mesquita foi ainda mais radical que no caso da assinatura. No início do governo republicano, quando tudo era instável, o jornal aceitou um contrato típico do jornalismo partidário para receber dinheiro público na época: passou a fazer o serviço de transcrição dos debates da Assembléia Estadual e a publicá-los. Mas, apenas assentado o novo regime, o contrato foi abandonado. Com a força política que tinha, Julio Mesquita poderia ter arrancado quanto dinheiro quisesse, caso quisesse, dos amigos no governo. Em vez disso, passou a agir em outra direção.
Confiança dos anunciantes
O novo regime provocou uma revoada de jornalistas na direção do funcionalismo público, a começar pelo diretor de redação, Francisco Rangel Pestana. Ocupando seu lugar, Julio Mesquita tratou de preencher as vagas contratando jornalistas que tivessem um engajamento pessoal com a profissão, sem ambições políticas próprias. Acabou recrutando emigrados portugueses (sobretudo para os fundamentais cargos de revisores e normatizadores da produção) e italianos (especialmente para a edição de material internacional); no mais, contratou uma série de pessoas que pensavam como ele: mais importante que o talento individual era a obra coletiva. A mudança se estendeu até mesmo para o preenchimento de sua vaga, ocupada por José Filinto da Silva, um dos primeiros a encarar a administração de um jornal sob o prisma empresarial.
Enquanto fazia tudo isso, Julio Mesquita ia criando um afastamento entre o jornal e o partido que lhe dera origem. Embora fosse um republicano de quatro costados, incomodava-se muito com o fato de que o jornal que dirigia era o órgão oficial do partido. Logo nos primeiros meses de sua gestão, conseguiu acabar com esta posição, convencendo o partido a empregar o Correio Paulistano ? jornal de conservadores que aderiram ao novo regime ? para esta função. Ao mesmo tempo, procurou fazer no jornal uma cobertura tão isenta quanto possível do novo regime, o que o levou a trombar de frente com o governo, logo nos primeiros meses de 1890.
Não demorou para que a equação ficasse clara para os acionistas do jornal: os números de venda melhoravam, enquanto a qualidade da submissão do jornal aos interesses do partido se deteriorava. Muitos ficaram insatisfeitos com esta estranha inversão de prioridades e começaram a vender suas ações, que foram sendo compradas pelo diretor. Sua peculiar posição com relação ao balanço entre as necessidades políticas e as do serviço aos leitores ia se fortalecendo cada vez mais.
Ainda assim, pouca gente poderia apostar na continuidade deste projeto quando se colocasse alguma questão que apresentasse a escolha entre um e outro aspecto de maneira radical. E este momento aconteceu no início do governo Campos Salles. Além de ser um dos principais responsáveis pela fundação do jornal, ele era tio da mulher de Julio Mesquita e freqüentador diário da casa de seu sogro ? onde ele mesmo morava. Como se não bastasse, foi eleito presidente da República. E, para tornar ainda mais atraente a situação para quem pensasse como jornalista partidário, era um presidente muito disposto a despejar dinheiro público para ter jornais amigos. Fez isso com grande volúpia durante todo seu mandato, e ainda justificou o comportamento mais tarde, quando escreveu uma autobiografia. Mais que nunca, portanto, Julio Mesquita tinha todas as condições para levar o jornal no caminho do partidarismo naquele momento. E esta seria a direção aprovada por todos numa época em que o jornalismo brasileiro era quase todo partidário.
Pois bem. Não apenas Julio Mesquita rompeu com o governo Campos Salles, como rompeu porque discordava da política dos governadores, que, em essência, transformava o resultado de eleições em questão de Estado, não em representação da vontade dos eleitores. Para mágoa do presidente, colocou toda a influência do jornal a serviço de seus leitores, prejudicados com a medida, e não de um governo bastante disposto a pagar pelo convencimento de seus benefícios. A posição valeu uma última ruptura: retiraram-se os acionistas que ainda esperavam dividendos políticos ? Julio Mesquita comprou suas participações, tornando-se dono do jornal. Finalmente podia fazer o jornal que imaginava.
Corria o ano de 1901, e a tiragem andava por volta dos 12 mil exemplares diários, o triplo do momento em que ele entrara para a empresa. Com a opção de partir para a oposição, Julio Mesquita perdeu seu mandato parlamentar e passou a se dedicar exclusivamente ao jornal. A partir daí, todos os esforços se concentraram numa única direção: eliminar todos os resquícios de partidarismo na cobertura política ? o que não queria dizer deixar de ter posições políticas, mas sim deixar de acreditar que tais posições se traduziriam imediatamente em atos do governo ?, ampliar o noticiário, buscar todos os leitores e anunciantes que estivessem dispostos a pagar pelo serviço, e entregar-lhes um jornal de qualidade melhor que a concorrência.
Tudo isto foi montado ao longo da década seguinte. A tiragem dobrou novamente; o noticiário se tornou, de longe, o mais isento da cidade; a credibilidade trouxe leitores de todos os matizes políticos, e com eles os anunciantes tiveram confiança para pagar pela inserção de mensagens. Tudo isso deu a Julio Mesquita segurança suficiente para pensar no crescimento do jornal como uma resultante unicamente de sua posição no mercado. Editorialmente isto queria dizer, naquele momento, não buscar favores com dinheiro público ? o governo era tratado como um anunciante como outro qualquer, que gerava em torno de 3% da receita do empreendimento, sempre pagando por anúncios a preço de tabela, e anunciando quando queria.
Prosa coloquial e fluente
A consolidação do jornal como uma publicação moderna, que fornecia notícias e artigos recebendo em troca dinheiro de anunciantes e leitores, aconteceu no início da segunda década do século. Em 1912, a empresa lançou debêntures no mercado para financiar sua expansão, conseguindo que até mesmo o capital viesse da comunidade a que servia, e não do governo. Foi um momento de grande atividade para Julio Mesquita, mas que teve conseqüências danosas. Ele sofreu uma forte crise pulmonar, e ficou vários dias entre a vida e a morte. Terminantemente proibido de trabalhar, foi obrigado pelos médicos a sair de perto do jornal. Passou mais de um ano vagando por hotéis da Europa, gastando seu tempo e vários baralhos jogando paciência, até que tivesse forças para voltar e conhecer o novo maquinário e a nova redação.
Financeiramente, o momento era delicado: muito dinheiro havia sido investido, e chegara a hora de pagar juros para aqueles que tomaram as debêntures. Mas, por outro lado, Julio Mesquita tinha confiança de sobra nas opções que tomara. Com 52 anos de idade em 1914, alimentava a esperança de realizar seu sonho, depois de tanto tempo: montar uma empresa sólida, e sólida porque fundada na confiança de um público amplo, não nos azares da conjuntura política. A obra coletiva finalmente se imporia sobre os acidentes individuais.
Não faltavam elementos para alicerçar esta confiança. Seu jornal liderava folgadamente a luta pelo mercado na cidade. Ele continuava mantendo suas posições políticas, a mais conspícua das quais era a luta pela verdade eleitoral, com a desmontagem das máquinas de fabricar resultados nas urnas erigidas com a política dos governadores. Continuou freqüentando o teatro e a vida cultural da cidade, ao lado da mulher, Lucila. Cada vez mais tolerante, não ligava a mínima para suas próprias contradições ? estava chegando ao ponto de apoiar a aprovação de verbas públicas para a Igreja, ele que nunca punha os pés em uma; fumava bastante, mesmo sofrendo dos pulmões. Entre o pouco que lhe faltava, estava uma casa própria: empenhado em solidificar o jornal, ele era econômico consigo mesmo a ponto de ter medo de empenhar o dinheiro pessoal num gasto que considerava luxuoso ? um outro indício de que colocava a instituição acima das pessoas, inclusive a sua.
Os cálculos positivos que embasavam o momento foram todos deixados de lado no momento em que eclodiu o conflito mundial. Mesmo antes de ele se generalizar, avaliou todas as conseqüências para a empresa: aumento no custo do papel, todo ele importado, e diminuição nas receitas de publicidade. Com a mesma rapidez, viu que seria uma luta extensa ? mas sobretudo uma luta de valores, uma disputa entre a democracia, que considerava um bem fundamental, e o militarismo, que considerava um mal sistêmico. Sendo assim, resolveu duas coisas. Primeiro, dar ao conflito um tratamento importante. Isso significava investir mais em informação, e mais ainda na apresentação da informação aos leitores. Publicaria a versão mais isenta possível do conflito, buscando as versões dos vários lados, e da maneira mais clara que conseguisse ? o que incluía a confecção de mapas das batalhas e a obtenção de fotografias. Em seguida, associar esta isenção do noticiário a uma posição editorial firme ao lado de ingleses e franceses, representantes da democracia.
Esta combinação entre isenção do noticiário e firmeza nas posições editoriais era a marca do jornalismo moderno. E só era possível como combinação com a condição que a posição fosse sustentada não por partidarismo, mas pela defesa de princípios considerados importantes para toda a sociedade, como no caso da democracia. Este é um valor universal, na medida em que sua defesa não está ligada a um grupo partidário, mas a uma regra geral. O exercício desta combinação entre isenção e engajamento, no entanto, se baseia numa arte de equilíbrio: supõe tolerância e capacidade de distinguir a todo momento entre o desejo, sempre grande, e sua possibilidade de realização, sempre limitada. Exige também uma modéstia básica: jamais se pode acreditar que os princípios se realizarão plenamente, e eles devem ser sempre submetidos à realidade dos fatos.
Este foi o exercício básico que Julio Mesquita desenvolveu ao longo dos quatro anos que durou o conflito. Embora claramente posicionado ao lado da causa aliada, em nenhum momento ele empregou esta crença para torcer os fatos dos campos de batalha. Podia ficar mais alegre com uma vitória ou mais triste com uma derrota, mas jamais ficava cego para o fato da vitória ou da derrota.
Com isso em vista, seu trabalho tinha uma dupla carga. De um lado, aparava as muitas arestas partidárias dos telegramas que recebia dos diversos países, até chegar a uma descrição dos fatos que julgava a mais próxima possível da realidade. Fazia isso com uma competência extraordinária, raramente se enganando quanto ao resultado efetivo dos conflitos. Uma vez cumprida esta etapa de análise, empregava seus valores para produzir uma síntese, que não tinha exatamente um sentido noticioso. Em geral apresentada na introdução, ela mostrava os valores que estavam em jogo por trás dos combates ? e sempre deixavam claros os valores importantes para o analista.
Em geral, essas duas tarefas são hoje realizadas por pessoas diferentes dentro de um jornal. A primeira cabe a repórteres e agências de notícias, que procuram transmitir notícias: relato isento de um conjunto de fatos. A segunda é a atividade básica de articulistas e editorialistas, que procuram um julgamento desses fatos segundo um conjunto de valores. O trabalho de Julio Mesquita mostra um dos poucos jornalistas de sua época no Brasil capazes de desempenhar as duas tarefas com enorme proficiência, produzindo textos em que as duas atividades apareciam bem executadas num único conjunto.
Esta era uma possibilidade que só existia com a condição da ausência de assinatura ? que contaminaria imediatamente a credibilidade da parte do texto que se caracteriza pela busca da isenção. E esta possibilidade de combinar análise e síntese era justamente a mais importante característica do trabalho de Julio Mesquita. Ao longo do tempo, ele foi transformando uma seção relativamente secundária, chamada "Notas e Informações", na página mais quente de seu jornal. Esta coluna era composta de pequenas notas editoriais, entremeadas de informações a respeito dos personagens ou do assunto enfocado. Grande parte de seu efeito vinha da arte de combinar a descrição mais seca possível com o comentário menos judicativo que se pudesse escrever. Por muitos anos, Julio Mesquita treinou seus principais redatores no uso desta combinação ? essa era a marca do jornal. À medida que o tempo passava, delegava cada vez mais esta função ? o que estava de acordo com sua idéia de textos que fossem do jornal, não de pessoas.
Esta delegação torna muito difícil a identificação daquilo que saiu diretamente de sua pena (eram tempos em que se escrevia à mão nos jornais). Há certeza de que, nos momentos das crises políticas mais importantes ou de grandes decisões, vinham dele as notas da coluna. Mas, na maior parte das vezes, há alguma dificuldade para identificar com clareza a autoria do artigo, dificuldade que aumentava com o maior adestramento de seu pessoal na técnica que eledesenvolveu.
A coluna semanal sobre a guerra, no entanto, é inteiramente de sua autoria; quando não escrevia, a publicação era suspensa. Ao longo dos dias da semana ele ia coletando o material, publicado nas edições de segunda-feira com o título "Boletim Semanal da Guerra". Em pouco tempo, tornou-se leitura obrigatória numa cidade em que a maioria da população era de pessoas nascidas nos países em conflito, especialmente italianos e alemães. Lida nos dias de hoje, revela em sua plenitude a imensa capacidade de peneirar fatos em meio a um cipoal de telegramas ? há muito poucos enganos de julgamento, absolutamente comuns nas condições em que se trabalhava na época. E revela também uma imensa capacidade de avaliar as conseqüências a longo prazo desses fatos, especialmente no campo dos valores. No conjunto, uma das mais factuais e isentas coberturas de uma guerra que se pode imaginar ? e uma demonstração clara do tipo de jornalismo moderno que Julio Mesquita realizava.
Mas isto que aparece aos olhos de hoje está longe de refletir a reação do momento. O pioneirismo de Julio Mesquita no cenário ao seu redor fazia com que os textos sobre a guerra fossem lidos quase que de maneira contrária à atual ? num padrão que se repetia na recepção de seus escritos sobre a política brasileira. Este descompasso permite entender as dificuldades que ele enfrentava para fazer algo que hoje parece normal ? suas palavras são facilmente entendidas hoje, tornando a leitura do texto agradável, mas não o eram na época.
Tudo nelas destoava do momento, a começar do estilo. A prosa de Julio Mesquita é coloquial e fluente, embora escrita num tempo em que o parnasianismo predominava em estética, o gongórico no discurso político, o afetado no comportamento social da elite. Era, enfim, um texto que se construía na contramão do estilo do tempo, feito para ser claro e conciso, avesso a demonstrações de erudição ou marcas de estilo, com uma dose precisa de ironia e celebrador de limitações.
A grandeza do jornalista
A adesão à causa aliada, o centro nervoso dos valores, é totalmente convicta e intransponível, mas quase nunca se traduz em certeza de vitória, desqualificação da capacidade bélica dos adversários, distorção no julgamento dos resultados das batalhas. Para os dias de hoje, esta seria uma posição prudente e matizada ? mas esta era uma impossibilidade numa época em que o padrão ainda era o do jornalismo partidário.
Desde o primeiro dia, a coluna não assinada provocou reações fortes, especialmente da comunidade alemã, bastante influente na cidade. Tão influente que tinha até seu jornal próprio, o Diário Alemão. Dele vieram os primeiros ataques ao jornal. Inicialmente contidos, falavam na impropriedade de uma cobertura pró-aliados num momento em que o Brasil mantinha uma posição de neutralidade com relação ao conflito. Mas bastou notarem que deste mato não sairia coelho para mudar o tom.
Das críticas, o concorrente passou diretamente para a calúnia, e uma calúnia típica de uma era dominada pelo jornalismo partidário: passou a dizer que a posição se devia ao recebimento de fundos pelo governo inglês. Como se verá adiante, não havia nada mais distante da realidade que esta afirmação ? mas também nada era mais adequado que esta afirmação na realidade brasileira. Desde Campos Salles, o noticiário dos jornais era tão viciado em publicar falsidades, desde que pagas com dinheiro público, como as eleições em atas falsas. A praxe da imprensa da época era a de acentuar a crítica ao governo simplesmente para aumentar o preço da adesão a ele ? e era uma praxe tão difundida que José do Patrocínio comparava abertamente o trabalho do jornalista ao de um advogado, pago para defender a causa de seu cliente.
Também neste sentido a cobertura de Julio Mesquita foi exemplar. Desde que optara por criar um negócio sustentado por leitores e anunciantes, ele afastara o jornal do padrão brasileiro. Publicava balanços regulares, destinados a satisfazer leitores e debenturistas. Assim criou o único jornal que criticava abertamente a situação da imprensa na época, e propunha outros métodos e objetivos para o ramo. Os boletins da guerra lhe deram mais uma preciosa oportunidade de mostrar até onde ia esta coerência.
A própria situação da guerra tinha conseqüências difíceis para a publicação. Como Julio Mesquita previu, logo o preço do papel aumentou e os negociantes se mostraram mais retraídos para publicar anúncios, o que corroeu os lucros num momento em que eram fundamentais para pagar os investimentos. Esta situação se agravou bastante com os ataques do concorrente germanófilo, até porque este logo encetou uma campanha para que os anunciantes alemães da cidade boicotassem o adversário. Claro que havia interesse próprio na posição ? os anunciantes alemães, mais interessados em vender que favorecer amigos, preferiam O Estado de S. Paulo. Mas, naquela situação excepcional, aderiram à idéia.
A combinação da retração natural dos negócios com o boicote produziu uma devastadora redução do faturamento publicitário. As vendas de anúncios, em relação a 1913, apresentaram uma queda de 21% em 1914, e de 32% no ano seguinte. Esta queda, combinada com um aumento de 15% nos custos do papel, corroeu todo o lucro do jornal, já em 1914. Na entrada de 1915, apesar de cortes em vários setores da empresa, a situação se tornou crítica.
A saída econômica evidente era a de sacrificar os valores de longo prazo à realidade do curto prazo, atenuando as críticas aos alemães e diminuindo o preço dos anúncios ? o que mal seria percebido numa sociedade acostumada a ver jornais mudarem de idéia. Mas Julio Mesquita resolveu apostar numa direção completamente diferente, numa decisão que mostrava um tino empresarial ainda maior que o jornalístico. Não apenas manteve sua posição pró-aliados, mas foi tornando-a cada vez mais clara, num momento em que os resultados dos conflitos não eram nada claros. Concentrou suas esperanças no único benefício efetivo que estava tendo com a situação ? o aumento do número de leitores ?, embora isso quase não tivesse tradução econômica naquele momento. Pelo contrário, fornecer pelo mesmo preço uma mercadoria que custava cada vez mais caro, como fez, significava corroer cada vez mais as já minguadas taxas de retorno.
Outra saída usual seria a de buscar algum dinheiro público para sustentar a travessia, uma possibilidade que sempre esteve ao alcance do jornal. Mas, em lugar disso, Julio Mesquita se encarregou de fechar a porta para este tipo de idéias, publicando uma longa série de editoriais, em dezembro de 1915, em que narrava os desastres da política iniciada por Campos Salles de comprar posições editoriais, e dissecava as conseqüências funestas da opção para os proprietários de jornais que caíam nesta tentação: "Os escribas sem ocupação, com o apetite aguçado, se ofereceram ao governo. Os governos aceitaram a oferta. Passou a ser uma das instituições oficiais mais queridas e mais cuidadas, uma das profissões mais protegidas como as mais honestas nunca o foram, o jornalismo venal, torpemente agressivo, sem freio de qualquer espécie".
Contra esta situação, só havia uma saída ? que ele empregou. Deu a público, com toda a clareza, todos os movimentos financeiros de seu jornal com o governo ? enquanto desafiava seus concorrentes a procederem com a mesma transparência. Nesta série de editoriais ficava claro que a opção pelo jornalismo moderno, que vive de leitores e não de butim, era irreversível.
Com esta estratégia em mente, adotou uma série de medidas para o ano de 1916, um ano de vacas magras. Apostou todas as fichas no aumento do número de eleitores, e o número de assinantes aumentou nada menos que 43% neste ano, passando de 16,6 mil para 23 mil ? com isso, a tiragem total do jornal chegou aos 45 mil exemplares diários. Este aumento do número de leitores se transformou num argumento importante para coletar anúncios. Para tanto, empregou-se uma arma forte: a luta direta contra a realidade partidária do mercado publicitário.
O primeiro passo nesta luta foi o de abrir um processo por calúnia contra o Diário Alemão. Como o ônus da prova cabia ao jornal, a saída foi a de abrir todos os registros contábeis para a Justiça ? e para os advogados do concorrente e os de todos que quisessem ver o processo. Tal procedimento era absolutamente inusitado na época, mas deu resultados. O primeiro deles foi o de conseguir uma condenação a dois meses de prisão para o diretor do jornal que acusava sem provas.
A segunda medida na mesma direção foi a de combater outra praga do jornalismo partidário que dominava o ambiente. Ainda era mantido o hábito da vista grossa para a inadimplência, que ganhara um novo motivo nos últimos anos: o preço da publicidade dependia da tiragem, e os jornais partidários viviam de mentir para cima os números de sua circulação. Porém, na falta de informações objetivas, o mercado acabava descontando a diferença no preço dos anúncios, num hábito que prejudicava mais os jornais que mentiam menos. Para contornar esta situação, O Estado de S. Paulo exigiu da Justiça uma auditoria na impressão e distribuição de exemplares, além do cadastro de anunciantes. Pela primeira vez na história do país, um jornal teve sua tiragem auditada, que lhe permitia cobrar um preço justo por seus anúncios.
Com todas estas medidas, obteve um aumento de 36% em sua receita publicitária de 1916 ? insuficiente, no entanto, para recuperar os níveis anteriores ao conflito. Como os preços do papel quase dobraram, nem todo o esforço melhorou a situação. Foi preciso limitar o tamanho das edições, cortar custos e diminuir pessoal, e ainda assim o lucro simplesmente desapareceu. Em 1917, a mesma situação se manteve, e o jornal precisou matar até mesmo a única razão de ser de tudo aquilo, o aumento do número de leitores: simplesmente foi obrigado a limitar a tiragem, sem o que teria prejuízo ainda maior com o preço do papel que passou a ser praticado.
O período de publicação do boletim foi ainda uma época dura sob o ponto de vista pessoal para Julio Mesquita. Em 1916 morreu sua companheira de 32 anos, Lucila, deixando-o com nove filhos solteiros, o mais novo dos quais com apenas nove anos de idade. Neste momento, a publicação foi interrompida pela primeira vez, até que ele se recuperasse minimamente para enfrentar seus problemas.
E estes, que já não eram pequenos, aumentaram quando o Brasil entrou na guerra ao lado dos Aliados, em 1917. Esta opção do país deveria significar um alívio para sua posição, mas as coisas políticas brasileiras nunca são o que parecem à primeira vista. Com a entrada na guerra foi decretado o estado de sítio, e com ele a censura ? velha adversária do jornal, mas desta vez a cargo das autoridades locais. Estas, por sua vez, andavam muito raivosas com o jornal, desde que ele defendera a posição dos grevistas na grande paralisação de 1917.
Assim produziu-se uma situação curiosa. Enquanto os artigos sobre a guerra ? teoricamente a razão de ser da censura ? eram liberados sem problema, o jornal não conseguia publicar uma única linha sobre as misérias do governo local. Foi assim até o último dia do conflito ? o jornal publicava espaços em branco, em um papel que lhe custava a saúde econômica.
Posto o contexto, pode-se finalmente compreender que estes textos aqui reunidos mostram a grandeza do primeiro jornalista moderno deste país. A grande demora para que isso acontecesse se deve ao quanto ele era rigoroso em manter o anonimato, decisão que permitiu esta evolução no jornalismo. Mesmo na época, os jornalistas sabiam que aquele era um material precioso, um grande exemplo do que se poderia fazer na profissão. Constituía-se, ainda, no único conjunto completo de textos claramente de autoria de Julio Mesquita.
Mas hoje, a reunião desses boletins é imperiosa para mostrar o valor da obra daquele que mudou radicalmente o sentido do jornalismo no Brasil. A camisa de força do anonimato era exigência de uma época na qual o texto jornalístico precisou ser imposto contra a realidade ao redor. Era o preço para a vitória de uma revolução num ambiente onde quase tudo conspirava contra a ausência de adornos na escrita, a clareza do relato, a busca de isenção da narrativa e a impessoalidade. Com décadas de antecedência em relação ao país, Julio Mesquita rompeu os limites que havia entre o jornal e seu leitor. E fez isso à custa de seu próprio reconhecimento. Pode agora ser reavaliado como o fundador do jornalismo moderno no Brasil.
(*) Jornalista e escritor; intertítulos da redação do OI