Tuesday, 12 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O futuro das TVs públicas no Brasil

PRODUÇÃO AUDIOVISUAL

Nelson Hoineff (*)

Nos dias 11 e 12 de junho, a TVE do Rio promoveu um seminário sobre o papel das televisões públicas. Chamou representantes da Radiobrás, do mercado publicitário, estudiosos do assunto e também gente de emissoras públicas nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha, que puderam relatar suas experiências.

Pode ser que o encontro não tenha chegado a definir o papel dessas emissoras. Seria suspeito se o tivesse. Mas conseguiu mostrar que há importantes pontos de convergência sobre questões ligadas ao financiamento, à qualidade e à autonomia das televisões públicas no país.

Não são três pontos tirados ao acaso, nem escolhidos aprioristicamente para o debate. Mas eles permearam as três intervenções dos representantes estrangeiros, nos momentos em que falavam das televisões de seus países e estiveram presentes, de forma direta, nos discursos de quase todos os brasileiros. São questões interdependentes e que definem o espaço por onde a TV pública deve transitar.

Vale a pena raciocinar por exclusão: a falha no tratamento de qualquer uma dessas questões simplesmente impede que uma TV pública possa cumprir a mais banal de suas missões, que tenha uma única justificativa para existir. Pode não ser muito, mas já é alguma coisa.

As televisões públicas no Brasil são hoje circunstancialmente beneficiadas por um conjunto de fatores:

** a qualidade da programação das televisões comerciais abertas nunca esteve tão ruim e o público já se deu conta disso ? da mesma forma o governo e até as poucas cabeças pensantes que existem dentro da própria televisão. Não passa um dia sem que uma dessas pessoas vá aos jornais para reclamar da baixaria na televisão aberta. No domingo, 8/6, o ministro Marcio Thomaz Bastos fez isso no Estado de S.Paulo ("Conteúdo da TV na mira do ministro da Justiça", entrevista a Leila Reis). Nesta semana, foi a vez de José Bonifácio de Oliveira, o Boni, dizer a mesma coisa às páginas amarelas da Veja;

** seu modelo de comercialização ? das televisões comerciais ? está em crise e a maioria das redes, em particular as menores, passa por problemas de inadimplência e forte dependência a formas heterodoxas de faturamento;

** todo o procedimento de aplicação de verbas do governo em publicidade e patrocínio está sendo rediscutido. Ainda que o debate em torno da distribuição das verbas de patrocínio às emissoras comerciais, baseado em critérios técnicos, não afete diretamente a TV pública, esta é muitíssimo afetada pelo interesse dos governos no seu próprio funcionamento e pela existência de uma atividade audiovisual sólida e pluralizada no país. Durante muito tempo, por exemplo, admitiu-se que toda a produção de televisão no Brasil pudesse ser privilégio de seis ou sete grupos. Hoje são dois ou três. Há um consenso, no entanto, de que esta situação não é tolerável ? e que cabe ao Estado estimular fontes diversificadas de produção. Isso passa pelas televisões públicas.

E mais: ainda que quase toda a produção audiovisual no país esteja paralisada, em grande parte por decorrência do debate acerca de dirigismo cultural e centralização de decisões sobre patrocínios das estatais, a respeito da diferença entre propaganda do governo e apoio ao desenvolvimento de indústrias audiovisuais (ainda que isso esteja ocorrendo), o fato é que essa questão está como poucas vezes esteve em debate pelo governo, com fortíssimo impacto sobre os mecanismos de produção das televisões públicas.

Gaiola aberta

A crise das televisões públicas no país ? em particular a da TV Cultura, de São Paulo, que acaba de sair de um período glorioso e hoje tem sua estrutura saudavelmente debatida à exaustão tanto nos jornais como nos meios acadêmicos ? é outra boa razão para que se entenda que a questão deve ser colocada em perspectiva.

É agora bem mais generalizado o entendimento de que cada arquitetura de televisão pública no Brasil difere da outra ? e que, portanto, cada caso deve ser estudado no seu próprio contexto. Isso acontece em grande parte porque, ao contrário do que aconteceu na Europa, onde a televisão nasceu pública e se estruturou dessa maneira, ganhando a organicidade que detém hoje, no Brasil a TV nasceu privada e as emissoras públicas foram se formando sem qualquer tipo de organicidade e com estruturas, projetos e principalmente ideários completamente individualizados.

Entidades como a Abepec têm nisso um papel meramente organizacional e dificilmente passarão do papel de uma distribuidora ? que oferece programação a quem queira carregá-la ? se não houver uma definição mais rígida da estrutura de cada uma das televisões públicas no país: a redefinição do papel das geradoras e o fortalecimento destas. Para que isso aconteça, é desejável que se estabeleça um cardápios de questões que devem ser respondidas com urgência:

1. Que modelos de financiamento, público e de mercado, podem ser implementados?

2. Como garantir a independência das emissoras frente a esses financiadores, em particular o Estado?

3. Como cuidar da necessidade (que não é corporativa, mas artística) da inclusão de programação independente e regionalizada nas televisões públicas e, ao mesmo tempo, otimizar e valorizar os recursos materiais e humanos existentes dentro das próprias televisões?

4. Uma boa TV não existe sem um bom jornalismo. Como praticar esse bom jornalismo em situação de absoluta autonomia em relação a quem está pagando a conta e, outra vez, de maneira muito particular, aos governos?

5. Como lidar com a necessidade de experimentação, de criação de novas linguagens ? que deve ser um compromisso essencial das televisões públicas ? e confrontá-las com a pressão do mercado por uma televisão imitativa, que reproduza as formas já existentes? Como buscar pequenas fatias em nichos já estabelecidos de mercado que garantam, como querem as medíocres políticas de mídia existentes, ofertas de números palatáveis aos anunciantes?

6. Como lidar com circunstâncias análogas de mercado ? que é cada dia mais conservador ? abrindo espaço para a ousadia e rejeitando o servilismo às análises quantitativas de audiência?

Nenhum modelo de programação pode seriamente ser estabelecido sem que haja respostas a essas perguntas básicas. Em artigo sobre a PBS na revista New Yorker ("PBS?s independent lens", 26/5/03), Nancy Franklin declara-se "algumas vezes ambivalente" sobre as boas intenções autoproclamadas da televisão pública. Mostra, no entanto, que só ali poderá transitar um produto da criação humana que não teria boa acolhida num mercado que não tem nada de criativo e nem de humano.

Nancy menciona especificamente uma série de documentários independentes ? sob o título "Independent lens" ? exibida pela rede pública americana e que, além do mais, é uma pechincha em relação aos preços praticados pelo mercado. "A PBS poderia comprar dez desses documentários pelo preço que o governo pagou para instalar o cenário para as entrevistas coletivas no Qatar durante a guerra do Iraque", escreve a jornalista. Ver esta série, diz Nancy, "é como ir a uma livraria independente ? você não encontrará sempre o que está procurando, mas geralmente vai achar alguma coisa que nem sabia que queria".

O que a televisão pública tem para oferecer ao público não é a mais chamativa entre cinco ou seis opções quase iguais que, num dado momento, estão sendo oferecidas pela televisão comercial. Esse tipo de oferta é determinada pelas pesquisas quantitativas. O que as emissoras públicas devem oferecer é aquilo que esse público nem sabia que existia. É o mundo infinito que existe quando se escapa da gaiola cultural na qual o telespectador está aprisionado, sobretudo no Brasil.

Há lá fora muitos e extraordinários caminhos para a televisão, para o espetáculo, para o jornalismo. Manter essa gaiola aberta não é uma concessão; trata-se de uma obrigação que o poder público tem com a produção brasileira de idéias e com a auto-estima da sociedade.

(*) Jornalista e diretor de TV