MEDO & PRECONCEITO
Paulo Lima (*)
Lima Barreto era um crítico mordaz da sociedade do seu tempo. Vivendo no Rio de Janeiro da recém-proclamada República, pouca coisa escapava de seu olhar perscrutador. No conto O homem que sabia javanês, esse autor genial, que conviveu com a pobreza e a loucura toda a vida (boa parte de sua família era constituída de pessoas com problemas mentais), não poupou munição contra a ignorância vigente entre os cariocas do século 19.
No conto, um desempregado vê certo dia, num jornal, um anúncio que lhe chama a atenção. Precisavam de um professor de javanês. Induzido pela necessidade, o herói picaresco se faz passar por um professor da língua da distante ilha de Java, e acaba conseguindo o emprego. Ele obtém tanto sucesso na nova profissão que conquista o cargo de respeitável funcionário de órgão público.
A ironia desse conto de Lima Barreto: a sociedade aceita e respeita aquele que aparenta douto saber. Saber devidamente atestado por títulos honoríficos, mas respaldado pela ignorância e pelo preconceito. Afinal, quantos naquele Rio afrancesado sabiam falar javanês? O herói malandro impôs-se mais pela parvoíce da sociedade do que por seus méritos.
Ora, a julgar pela leitura dos jornais, a ética que representaria aquela realidade distante parece ser moeda vigente também nos tempos atuais. Ou então como entendermos um dos ranços que andaram ameaçando a eleição de Lula para presidente? O argumento esgrimido pelos adversários com espaço nos jornais e na TV era (e continua sendo) um só: presidente sem láureas acadêmicas não pode governar o Brasil.
Esse raciocínio celebra, na essência, a vitória da ordem tecnocrática sobre qualquer outro tipo de saber ou experiência, e finda por reafirmar velhos estigmas que distinguem a superioridade de uma cultura sobre a outra. Um ex-torneiro mecânico, na escala de valores vigentes, não pode valer mais do que um sociólogo. Dito isto, e sendo assim, seria lógico afirmar, sob o rigor do saber tecnocrático, que um ex-torneiro mecânico jamais poderia almejar o cargo de presidente da República.
Preconceito a vencer
Curioso é que essa instrumentalização do poder foi questionada pelo Fernando Henrique Cardoso sociólogo. No poder, presidente, agarrou-se tanto ao cargo que lá permaneceu durante dois mandatos.
Sabemos bem o que os arautos do templo tecnocrático fizeram com o Brasil. De milagre em milagre, quase fomos parar no brejo. Com um truque monetário, conseguimos nos distanciar do brejo ameaçador da inflação, mas a ele sempre retornamos, como agora clama a imprensa, quando o foco é a dívida social no país.
Uma vez que o eixo da discussão gira em torno de competências com suposto respaldo no saber acadêmico, algumas perguntas são possíveis.
Se um intelectual tradicional não foi bem sucedido na política de redução do enorme déficit social, outro intelectual, orgânico, egresso dos próprios trabalhadores, não poderia sê-lo? A justiça social só poderá resultar do equilíbrio de contas macroeconômicas favoráveis? Ou poderá ser tratada como prioridade do Estado? Permitirão as elites, costumeiramente aliadas a interesses políticos conservadores, a realização desse projeto de nação, ou o abortarão mais uma vez? Soçobrará o Brasil ao primeiro arrufo do capital internacional?
Perguntas ao léu, certamente, enquanto se festeja a vitória da esperança sobre o medo. A esperança vencerá também o preconceito, especialmente o da mídia? Ou o novo presidente precisará aprender a falar javanês?
(*) Estudante de Jornalismo; site: Balaio de Notícias <www.sergipe.com/balaiodenoticias>