Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O imaginário de Silvio Santos

QUALIDADE NA TV

SHOW DO MILHÃO

Alexander Bernardes Goulart (*)

Silvio Santos é o mais competente âncora da televisão brasileira. Os elevados índices de audiência que seus programas alcançam, seu carisma pessoal e o sucesso de seus empreendimentos comerciais comprovam esse fato. Pessoas de todos os grupos sociais, especialmente das classes C e D, assistem ao Silvio Santos no SBT, falam sobre os programas, discutem detalhes, compram o Carnê do Baú e a Tele Sena.

O ex-camelô Senor Abravanel, por sua competência empreendedora, carisma e intuição, construiu um império que abrange as áreas de comunicação, financeira e comercial. Ele criou, a partir do Baú da Felicidade, um conglomerado de 33 empresas bastante lucrativas, onde se destaca o Sistema Brasileiro de Televisão, o carro-chefe do Grupo Silvio Santos.

Até novembro de 1999, sempre aos domingos, os fregueses do Baú ou da Liderança Capitalização tinham a chance de ganhar uma geladeira, um microondas, uma bicicleta, um carro ou uma nota de 50 reais em algum dos programas ancorados por Silvio Santos. Depois da estréia do Show do Milhão, que se tornou líder de audiência no horário, a figura carismática do dono do SBT passou a aparecer no meio da semana e a chance de se ganhar algum dinheiro também aumentou.

Com o sucesso do programa, Silvio Santos percebeu que poderia ganhar audiência em horários até então perdidos para a concorrência. Assim, o Show do Milhão virou mania nacional, recorde de audiência do SBT. O fenômeno em que o programa se tornou, garantiu a Silvio e ao SBT inúmeras reportagens em revistas e jornais, inclusive o lançamento de uma biografia sobre o homem do Baú – A Fantástica História de Silvio Santos, publicada em novembro de 2000 pelo jornalista Arlindo Silva.

O Show do Milhão condensa as características peculiares de Silvio Santos e do SBT, sendo esses dois um sinônimo, na medida em que a emissora depende do carisma e decisões diretas de seu proprietário.

Semiologia

Se analisarmos o programa sob a luz da semiologia de Roland Barthes, tendo em vista as categorias âncora, fait divers, poder, mito e imaginário, veremos que o Show do Milhão possui, realmente, a essência de Silvio Santos.

Pela ancoragem, verifica-se que a figura carismática, o sorriso constante, os gestos de Silvio Santos compõem um estilo próprio. Mas o que caracteriza o âncora é o seu domínio da interlocução. Ele se constitui no grande argumento do programa, sustentado no seu discurso verbal. É ele quem detém a atenção do público de casa e do auditório. É o mentor dos candidatos, aconselhando, repreendendo, ensinando e orientando.

O fait divers está intimamente ligado à estrutura do programa, que valoriza o espetacular, a interpelação pela emoção. O âncora procura criar estórias dramáticas a partir do depoimento dos candidatos e de seus acompanhantes, fazendo a ênfase recair sobre um "dramatis personae". O jogo de sorte e azar, a busca por uma sujeito absoluto que possa resolver o conflito também caracteriza o fait divers. A conseqüência é a identificação projetiva do público, culminando com a catarse.

Se houver desejo, haverá motivação. Se houver motivação, haverá excitação. Assim é o poder. A tensão conflitiva e o prazer estão unidos. É o poder que prende o público, cria a energia prazerosa dominante, a emoção. O desejo e a excitação são o princípio e o fim do Show do Milhão.

Silvio Santos é um mito que se manifesta sob dois aspectos: o homem que deu sorte e tem sua imagem aliada à riqueza; e o Show do Milhão, um programa de perguntas e respostas onde é impossível ganhar a maleta com um milhão de reais em barras de ouro. A formação do mito Silvio Santos, o homem de sorte desloca a atenção para a sua pessoa, tornando a conquista da maleta de ouro um sonho quase inatingível, que só poderia se tornar realidade se o âncora permitisse.

Quanto ao imaginário, as conquistas e as vitórias, alcançadas por cada candidato, não são fruto do esforço, do trabalho, mas da sorte. Chega-se à riqueza, facilmente, com total isenção de esforço. Não há méritos. É apenas ilusão.

O Show do Milhão é um imaginário de Silvio Santos e do SBT. O programa permite que pessoas comuns ganhem milhares de reais sem fazer esforço, satisfazendo, assim, seus desejos. É o desejo que impulsiona tudo. Sabiamente, o SBT apostou numa linha de programação que atinge substancialmente um público mais carente. Quanto maior a carência, maiores as necessidades e mais evidentes os desejos. Como grande vendedor que é, Silvio Santos considera tudo um grande negócio e quer ter lucro. Por conhecer os desejos dos mais carentes, afinal, seu público cativo por décadas, Silvio sabe como ninguém aliar lucro e satisfação pessoal.

SBT: passado e presente

Quando era camelô, Silvio só comercializava produtos que tivessem demanda. Sempre partindo das necessidades de algum público, ele descobria qual o melhor produto para a ocasião. Assim, vendia carteiras plásticas para título eleitoral em época de eleições; refrigerantes na barca Rio-Niterói, onde também fazia shows, porque o trajeto era muito monótono. Com o Baú da Felicidade, criou uma nova forma de capitalização. A partir do Baú, surgiram as outras empresas do grupo – todas elas foram criadas, para atender à demanda do Baú. Seu programa dominical na televisão existia para fazer propaganda do Carnê e de outros produtos. Enquanto divertia o auditório e os telespectadores, Silvio Santos embolsava muito dinheiro.

Até o surgimento do SBT, Silvio gastava muito pouco com a produção de seu programa na televisão. Em compensação, o retorno era significativo, pois, além de ganhar com merchandising, ainda fazia propaganda dos produtos de suas próprias empresas. Quando o SBT surgiu, o investimento foi alto e o retorno comercial, muito lento. As contas só foram equilibradas quando a emissora apostou em programas mais elitizados e investiu em nomes como Boris Casoy e Jô Soares, fazendo a verba publicitária aumentar.

A grade de programação do SBT é constantemente alterada. A concepção televisiva de Silvio Santos é a de manter no ar a produção que estiver dando bons índices de audiência. Até mesmo os seus próprios programas deixam de ir ao ar quando perdem pontos no Ibope. Para ele, a televisão não tem função educativa ou social. É entretenimento e lucro, é um negócio como qualquer outro. Se um programa faz sucesso no exterior, ele compra os direitos ou copia a idéia. O Show do Milhão foi inspirado no Who Wants to be a Millionaire?, uma produção norte-americana.

Durante toda a sua vida, Silvio Santos foi um vendedor, um comerciante. Fez do SBT uma empresa sólida, mas que só se mantém como segunda emissora do país porque não aceita veicular nenhum programa que dê prejuízo, o que a torna experimental – está sempre testando novas produções, mesmo quando são cópias. Se der audiência, permanece no ar. Caso contrário, deixa de existir. Tantas alterações e experimentações tornaram o SBT uma emissora sem identidade própria, totalmente dependente da intuição e decisões diretas de seu dono.

Especificamente, o Show do Milhão – produção copiada de um similar norte-americano, foi o próprio Silvio quem assistiu à versão estrangeira e se encantou – é um programa que já teve os mais diferentes horários e dias de veiculação. Entra e sai do ar a cada série de 22 edições, exceto na última temporada. Para ajustá-lo na grade de programação, as outras produções da emissora tiveram seus horários alterados.

Para participar do programa, é necessário comprar uma revista, mandar um cupom e ser sorteado – o mesmo processo da maioria dos programas, ancorados por Silvio Santos. Assim como no antigos Porta da Esperança, Roletrando e nos atuais Topa tudo por Dinheiro e Tentação, além do divertimento, Silvio Santos oferece a oportunidade de ganhar dinheiro, prêmios, realizar um sonho.

É assim que o âncora e negociante alimenta o seu público: oferece a possibilidade de ser feliz e ter acesso a bens simbólicos, a chance de ganhar uma geladeira, um tênis ou um milhão de reais. É a promessa da felicidade ao alcance de todos – felicidade sorteada, vendida e distribuída. É Silvio Santos, o vendedor de ilusões. É o Show do Milhão, imaginário de Silvio Santos e do SBT.

(*) Jornalista

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