IMPRENSA & CRIME
Muniz Sodré (*)
Em jornalismo, quando se fala de desinformação, tende-se logo a pensar em manipulação falseadora de fatos, senão em algo como má consciência profissional. Isto tem ocorrido, pode continuar ocorrendo. Há um outro tipo de desinformação, porém, que resulta da onipotência explicativa da mídia, de sua pretensão de tudo esclarecer às pressas, ainda que a partir de uma "douta ignorância" sobre o assunto em pauta.
Um bom exemplo disso é o atual uso abusivo do conceito de psicopatia para tentar explicar crimes recentes, recorrentes no noticiário dos jornais e da televisão, a exemplo do parricídio numa família de classe alta em São Paulo. O colunista de um jornal carioca chega a anunciar uma "moda de psicopatia na onda de crimes que está rolando no Brasil".
Em artigo para a Folha de S.Paulo, a psicanalista Maria Rita Kehl advertiu muito sensatamente que "não podemos conhecer, com base no noticiário, as mentes de Suzane von Richthofen e seu namorado Daniel Cravinhos Silva". Apesar disso, multiplicam-se os textos jornalísticos em que a psicopatia aparece como explicação, sugerida inclusive para crimes de natureza bastante diversa daquele tipificado no parricídio.
No entanto, é difícil saber do que se está falando quando se classifica alguém como psicopata. Uma consulta rápida a dicionários especializados faz aparecer a dificuldade com o conceito. Por exemplo, o velho dicionário de psicologia de Henri Piéron nos informa que "psicopata é o indivíduo afetado pela psicopatia". Só. E o que é psicopatia? Inexiste o verbete. Em outras palavras, esse dicionário não informa nada.
Uma outra consulta revela que psicopata é alguém com transtornos mentais, porém não-manifestos, já que suas funções intelectuais são mantidas. Como se sabe então que o indivíduo é psicopata? O tratado nos deixa na mão. Recorramos, então, a algo mais sofisticado, como o boquejado Dicionário de Psicanálise, da dupla francesa Laplanche & Pontalis. Este sai do embaraço simplesmente ignorando o assunto: não registra nenhum verbete sobre psicopatia.
A mesma coisa…
O problema é que sabemos ou, talvez, sentimos que os psicopatas existem. Os thrillers cinematográficos vivem nos lembrando disso, com muita convicção, desde Psicose, de Alfred Hitchcock, e principalmente agora que o canibal Hannibal Lecter ? culto como um economista do FMI, frio como um banqueiro e cruel como um deputado de motosserra em punho ? impõe-se ao marketing do cinema como um paradigma de sucesso.
A existência do vampiro é incerta, podemos apenas sentir medo do personagem Drácula. Sobre o psicopata, entretanto, temos uma margem razoável de certeza. Pelo menos, o cinema e o jornalismo dele falam com tranqüila cientificidade.
Por este motivo, decidimos empreender uma rápida pesquisa no campo das relações pessoais com psicanalistas. Evitamos falar com epígonos de Lacan, já que se tratava de esclarecer, e não confundir ainda mais. De dois ortodoxos respeitáveis, ouvimos, em resumo, que psicopata é aquele indivíduo que realiza atos de natureza transgressiva sem qualquer consideração a princípios morais ou éticos e sem levar em conta a singularidade de um "outro".
Trata-se aí de um pronunciamento mais claro, mas ainda capaz de gerar dúvidas. De fato, a se tomá-lo ao pé da letra, qualquer criminoso poderia ser chamado de psicopata. O conceito perderia sua especificidade psicológica ou a possibilidade de seu controle psiquiátrico se o estendêssemos ao vasto campo da marginalidade. Ainda mais que, segundo bem sabemos, existe a categoria dos "sociopatas".
Por outro lado, em toda essa história de violação de princípios éticos, de atendimento exclusivo a uma razão privada sem respeito à singularidade de outra condição humana, reencontram-se os mesmos traços que nos permitem definir um certo estilo de política e de economia, predominante nos dias que correm. Referimo-nos, claro, ao neoliberalismo. Os jornalistas podem terminar chegando à conclusão de que psicopata e neoliberal sejam a mesma coisa.
(*) Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro