A CARNE E A MÁQUINA
TT Catalão (*)
Este texto reproduz a aula inaugural do proferida pelo autor no Curso de Comunicação da Universidade de Brasília, em 27/3, e transmitida pela rádio comunitária Rala-Coco para a área da universidade e região vizinha.
Não pretendia fazer uma palestra formal, mas pontuar temas, como pautas, para logo abrir discussão. Porém, alguns professores entendem a necessidade de um texto corrido, mais apropriado para reproduções posteriores, o que, rogo, não impeça o debate (o que mais me anima na vida). Tentarei ser o mais breve possível no texto formal.
Nas ruínas da cidade do futuro, esta utopia abortada, Brasília, encontramos fotos da extinta revista O Cruzeiro, que mostram a primeira mídia nos canteiros de obras de 1957: são recados, bilhetes e avisos pregados nas portas dos barracões. No pátio, espetados em bambus com gambiarras, o serviço de alto-falante retransmitia a programação pioneira da Rádio Nacional e improvisava locutores para animar a quermesse febril de suor e de concreto candango. Era a primeira mídia da cidade. E assim eles supriam a necessidade fundamental de informação em qualquer comunidade.
Presídios, hospitais, guetos, quilombos, focos culturais, precisam de códigos e gírias de identificação. O comunicar deixa de ser apenas o ato de compartilhar algo, tornar comum, mas um ato público de realização civil, compromisso, construção da identidade pessoal e coletiva. Comunicar para a apropriação da realidade, do lugar, no tempo, no espaço e no imaginário. Comunicar, senso amplo, é troca.
Sem empatia, cumplicidade, retorno, referências comuns; sem tocar, ou até seduzir o outro, não acontece comunicação. E um comunicar mais pleno deve escapar do controle do emissor e sua capacidade de manipulação. Diminuir a influência de quem detém o poder para repetir suas verdadezinhas com alto grau de volume e envolvimento até prostrar a massa em narcose.
O jornalista, a carne, reporta a realidade fragmentada ou a edita, na tentativa de organizar o caos cotidiano. Ele precisa escapar dos truques da edição intencional determinada pela máquina, empresa, que pode filtrar, diluir ou potencializar os fatos segundo fatores extra-jornalísticos pela conveniência do poder direto ou implícito. Sob a pressão econômica do negócio-macro-jornal, desenvolvem-se diversas respostas de máquinas e de carnes. Uns são mais fiéis ao compromisso ético de manter posições pessoais definidas, porém jornalistas o bastante para abrir espaço e tempo ao contraditório; outros mantêm algum pudor ao não se submeterem totalmente aos patrões externos que policiam notícias, mas há os que escancaram na subserviência pela hipócrita mobilidade flexível do caráter servil (geralmente são os que mais se autoproclamam "sérios", "isentos", "técnicos" ou "profissionais"), quando são apenas carne volúvel e volátil na máquina de notícias.
A carne-jornalista está sempre sob diversas gradações de liberdade negociada. Sob avanços e recuos em linhas editoriais. Liberdade mitológica, absoluta e etérea não se ganha. Só há a que se conquista entre vias naturais e desvios paranormais. Na luta. Só não há o que negociar quando a ruptura se dá na escala de valores, na consciência que nos mantém sob um mínimo de dignidade. Aí a escolha entre entregar a carne a redações tipo linha de montagem opacas ou buscar ser carne e seiva em espaços inovadores (mesmo que aparentemente não existam tantos, é possível crer na capacidade de se organizar para mudá-los).
Depois de 1957, dos recados nos barracões, em 1960, na inauguração de Brasília, a sagacidade de Chateaubriand implanta o Correio Braziliense e a TV Brasília como sinais contemporâneos de massa para dar o sentido maior de Capital da República. Imprensa formal, como ferramenta, sem que isto significasse "suprir as necessidades fundamentais da informação livre" da cidade, principalmente com a tragédia dos anos de censura da ditadura militar, onde o Correio foi um diário oficial inexpressivo como veículo moderno de comunicação, sempre com as honrosas exceções de praxe.
E assim morrem os jornais
Retorno à necessidade de se explicitar a comunicação como ato público de partilha. A emergência do uso popular da mídia, mesmo sobre empresas, como um retorno do investimento de Estado, pois as empresas de comunicação seriam um serviço público diferenciado com espaço subsidiado pelas renúncias fiscais ? verbas paridas pelo imposto da população. Sem falar no uso das verbas públicas em propaganda oficial que viabilizam o negócio da informação e punem jornais de oposição enquanto, até, fundam jornais dóceis ao governo.
O nascimento histórico do Correio marca a presença da mídia formal em Brasília, o que mais lhe investe respeito e tradição como um patrimônio e tribuna da cidade, principalmente pela honrosa herança do título herdado de Hipólito da Costa, fundador da imprensa nacional (clandestina) liberta do diário oficial do imperador. Apenas nos anos 70 a cidade reagiu mais organizada na tentativa romântica de eficazes experiências editoriais, chamadas alternativas. Que duraram pouco mas semearam muito.
Os veículos disponíveis em Brasília não refletiam o que a cidade queria ler, ver e ouvir. E muitos títulos surgiram no pleno exercício de expressão que qualquer comunidade tem de escolher sua mídia. É ela quem viabiliza a saúde financeira dos seus jornais e emissoras de rádio e TV. Pela audiência, assinaturas e compra em bancas, a cidade diz sim ou pode dizer não ao tipo de tratamento da informação que recebe. Ela opta pelo tipo de análise dos fatos ou mesmo a cara da sua mídia do dia-a-dia. Aí, talvez, a chave para o momento atual da imprensa em Brasília. Manter máquinas organizadas para informar ou máquinas arbitrárias, parciais, para deformar, está em xeque. Só será mantido um modelo se existir cumplicidade de quem o legitima. Assim, está nas mãos, olhos e mentes de quem compra tais produtos embalados e veiculados para vender o futuro deste quadro.
No miolo da máquina está o jornalista. A pessoa, o talento, aquele que detém técnicas mas não se exime da carga cultural e política que o conjuga na relação com a sua cidade, com a empresa que o emprega e consigo mesmo em consciência e responsabilidade social. Carne para ser moída ou carne para ser alimento de cidadania. Se a notícia prevalece como mercadoria, algo de muito grave se instala no circuito de troca entre veículo e comunidade. Se isto acontece a empresa perde o seu maior capital: a credibilidade. E aí, não é mais uma crise de linguagem, formatos, estilos de textos, cenários, personalidades, egos, estratégias de marketing ou diagramações pirotécnicas da embalagem. Instala-se uma terrível crise de caráter. O veículo que deixa de espelhar sua comunidade e trai esta comunidade ao sonegar informações, menosprezar linhas investigativas, cercear a ousadia do repórter na busca pela verdade, ao usar recursos diluidores para tratar como "menor" a informação que possa incomodar sua fonte de renda, ou seus tutelares ideológicos de plantão, comete o crime de lesa-informação. Omissão é um míssil devastador para o futuro de um jornal.
E assim morrem os jornais. Geralmente é um processo lento. Lembram as estrelas que julgamos ver no espaço, mas é só a ilusão de ótica, da luz viajando no éter. Na verdade, o cerne, a massa crítica geradora está morta, mas ainda vemos resíduos de partículas sobreviventes ao grande big-bang. E quando os veículos explodem a carne triturada do jornalista ? de alguns jornalistas, aqueles que ainda teimavam em incomodar a engrenagem ? é dilacerada, antes. Eles precisam ser removidos como corpos estranhos. São vitalidades inconvenientes em carcaças próximas da putrefação. São lembranças incômodas na trajetória das faxinas imorais que limpam terreno. A diferença é que vísceras de jornalistas (exceção dos correspondentes de guerra como Tim Lopes, o mais recente) possuem fibras mais incômodas e permanentes que as orgânicas. A fibra de um jornalista quando explode está no tanto das idéias semeadas, no quanto ele se comprometeu pela fidelidade ao seu leitor ou sua audiência. No quanto incorporou seu compromisso de honra, diário, para suprir as tais necessidades fundamentais de informação, análise, conteúdo, serviços e até mesmo emoção, prazer e entretenimento não-degradante.
Bonitinho e ordinário em conteúdo
A carne do jornalista caminhará sempre nesta lâmina instável de contradições, e que dele será exigida imparcialidade, enquanto a empresa que o emprega cria laços obscuros e arregimentam clones patronais, confiáveis, para exercer a censura em diversos níveis de sofisticadas intervenções. Dele será exigido que "não opine", não exerça sua liberdade de expressão autoral, enquanto a empresa mantém e incentiva, com bônus promocionais aos mais exemplares-do-bom-comportamento, que sigam as orientações direcionadas para o negócio-jornal. Assim, quem tem paga, e quem paga leva vantagem. O óbvio é que qualquer empresa mantém quem lhe interessa.
A diferença é que mídia é um negócio com profundas implicações sociais, educativas e cívicas, se assim quiser receber o honroso título de "imprensa". Empresa de mídia cria relações diferentes de compromisso com sua cidade. Não é uma padaria qualquer. Nem uma fábrica de parafusos vulgar. O direito e o acesso à informação livre está na matéria-prima processada pela mídia. Se há farsa, a máscara cai quando o público que sustenta o engodo percebe o cheiro de jogada e decide impor sua vontade soberana. O público, antes, tratado como "segmento de mercado", "público-alvo" ou "audiência qualificada", pode deixar de ser consumidor de notícias para exigir informação sob valores éticos comprometidos com sua construção cidadã. Pode exigir prioridade para uma cobertura local de comprometimento ético com a sua cidade, permanente, e não com o governo temporário, que vai passar. Porém, público só exige quando é crítico e ativo. Tal patamar é difícil de atingir quando tratados apenas como "segmento de mercado" ou um débil mental em busca de roteiros para turismo, restaurante, entretenimento e serviços gerais.
Confesso que uma das maiores alegrias de minha passagem pelo Correio foi quando lutei ao lado de Chiquinho Amaral ? sempre autorizado pela capacidade inquieta de invenção do Noblat ? para vencer resistências contra a intervenção na logomarca sagrada do jornal para escrever Correio DO Brasiliense (uma página feita pelos leitores), assim mesmo com pichação, na marca de um S e de um DO. Isso traduzia o sentido maior de um projeto entre as inúmeras ousadias vividas por aquele jornal entre 1995 e 2002.
Ali, vivemos momentos raros, em que a carne e a máquina se aliaram por alguns instantes e o fazer jornalismo e o ser jornalista (mesmo e sempre sob as naturais contradições e pressões da profissão) conseguiram breve conciliação. E isto aconteceu por um breve momento no Correio, mas foi resultado de luta. Algo que merece ainda ser detalhado pela profundidade do alcance de um projeto muito além da imensa margem de surpresa e evolução estética, mas pelo conteúdo moral e social aliado à linguagem em si para um novo formato de mídia impressa. Não que o projeto fosse perfeito, ou existisse liberdade utópica e absoluta, vivêssemos em permanente clima dionisíaco de fechamentos orgiásticos. Apenas vivemos um belíssimo processo que ainda estava em construção. E havia senso crítico para a correção de cursos. Entre inúmeros erros e necessidades de ajustes do projeto, alguns, tenho certeza, não cometemos: o crime da omissão, a apatia em repetir a mesmice, o tédio do jornal bonitinho mas ordinário em conteúdo.
Vivemos enquanto teimamos
Tal ânimo especial estimulava porque o vetor estrutural do projeto elegeu o leitor e a redação como eixo. "Quem pauta o editor é o repórter", instigava o Noblat. "Levanta essa bunda da cadeira que a vida está lá fora", insistia ele na busca da notícia. Principalmente, as "invisíveis", o lado diferente de contar uma história, a humanização do tema, o contexto dessa notícia e sua projeção (o que fazíamos com pesquisa, memória e artigos). Tudo isso porque as premissas conceituais do projeto buscavam apurar a verdade obsessivamente. Tudo isto porque os suportes definidores do formato gráfico não eram simples adereços embelezadores. E, principalmente, porque tudo isso só é possível se houver o espírito vivo da liberdade a permear relações de trabalho e compromisso comunitário.
Liberdade assumida pelo filósofo espanhol Miguel de Unamuno, autor de O sentimento trágico da vida, quando reitor da Universidade de Salamanca, ao responder ao general Milan Astray, da falange de Franco. O general, ao invadir a universidade (e esta UnB tem páginas infelizes e idênticas em sua história), berrou: "Abaixo a inteligência e viva a morte!" Unamuno toma a palavra e abafa os gritos de "Viva la Muerte" com um discurso que o levaria à prisão, onde morreria meses depois. Dele, extraímos esta frase simbólica: "Sou incapaz de me calar. Há momentos em que calar, é mentir”. Nada mais expressivo da consciência que justifica a carne, e só assim ela é a única capaz de legitimar a máquina. Nós, frágeis carnes, somos enfim, os polarizadores simbólicos da credibilidade, este único capital honroso, das máquinas.
Nós, desatados. Sem contágio com o simulacro. Recusamo-nos a ser coveiros de uma paixão. Nós, jornalistas, sem o lacre do lucro. Carnes em desacato e desabafo pelo direito inalienável de só existir imprensa onde prevaleça a liberdade, pois não há uma coisa sem a outra. Aliás, é redundância o termo "liberdade de imprensa". Só há imprensa onde há liberdade. Só há imprensa onde há credibilidade. E quem credibiliza a máquina são a audiência e o leitor. Fora disso, jornal é uma sopa de letrinhas arrumadas com truques estéticos de imagem. A TV é só um show. O rádio um ruído sonoro. O jornalismo fast-food um circo de atrações grotescas.
Nós somos a carne e o cerne das máquinas. Mesmo quando expostos em vísceras públicas, descartados, pelos ares. Jornais morrem lentamente. Nós, não. Nós vivemos enquanto teimamos ser jornalistas no ato público de comunicar, compartilhar, informar.
Existir é resistir. Muito graTTo… mesmo.
(*) Poeta e jornalista, ex-editor e colunista do Correio Braziliense