Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalismo esportivo e os ídolos de barro

MÍDIA NA COPA

Ivo Lucchesi (*)

Bem sabemos que perfil crítico não é característica predominante do jornalismo brasileiro contemporâneo, afora raríssimas circunstâncias e não menos raros colunistas e repórteres. Todavia, nenhuma área de jornalismo temático se esmera em ser eficientemente acrítica quanto os responsáveis pela cobertura esportiva. Como mero exercício de imaginação, fico a pensar como procederiam João Saldanha, Sandro Moreyra e Nélson Rodrigues frente ao quadro no qual se converteu o chamado "mundo do esporte" e, principalmente, o do futebol que, de longe, ainda oferece o prato mais apetitoso às multidões.

O fato de estarmos no auge do maior evento esportivo do mundo se insinua como situação adequada ao exame do tema aqui sugerido. Para tanto, far-se-ão indispensáveis as provocações a seguir, com o intuito de configurar a total falta de registro crítico, mesmo diante de fatos que, não sendo intrigantes por sua própria natureza, passam a ser pelo absoluto silêncio em torno deles.

Jornalismo-exaltação

Que o cenário do esporte, ao lado do jet set artístico no qual agora também se insere a moda, representa a passarela ideal por onde desfilam os olimpianos, a exemplo de como assim nomeia Edgard Morin, é uma verdade já sabida e cristalizada. Todavia, é estranho que nenhuma voz, sem fazer coro ao endeusamento e à exaltação "gloriosa" dos "grandes feitos", dos "ídolos de multidões", ofereça questões capazes de possibilitar um mínimo de contraponto, a fim de dar oportunidade aos leitores de testarem suas próprias desconfianças, quando se sentem em meio a acontecimentos um tanto incômodos à lógica.

O setor político nacional, timidamente ou não, andou criando aqui e ali constrangimentos a determinados feudos de "nosso caro futebol". CPIs mapearam falcatruas de toda ordem, enquanto a imprensa do referido setor, com esmerado cuidado, excetuados dois ou três nomes, noticiava as acusações, mas sempre de um modo a não propiciar maiores aprofundamentos. Quando, porventura sobre um nome, faziam maiores pressões, também ficava-se sabendo que a empresa a abrigar e divulgar tais matérias era parte interessada nas próprias denúncias, o que diminuía em muito a colaboração prestada com a divulgação.

Afora o "jornalismo-exaltação", sempre pronto a heroicizações trivializadas, a que outro enfoque poderia prestar-se, num país com tantas carências e injustiças de toda ordem? Teria direito o nobre jornalista de arranhar a única chama de alegria com a qual milhões de brasileiros alimentam e renovam a carga na bateria de suas vidas? Esta é uma pergunta cuja substância dilemática acredito não haver habitado nenhum profissional do setor. Afirmo isto por considerar que eticamente esse eventual questionador jornalista, acometido por alguma angústia hamletiana, não resistiria a si mesmo e enveredaria pela cobertura crítica, em nome de não colaborar para a falsificação dos seres. Assim sendo, sou levado a crer que a maioria acrítica assim procede por ser mesmo ingênua e infantilizada, preparada para esse propósito.

O perfil do jornalista acrítico coincide curiosamente (?) com o mundo do esporte, quando este começou a ser tragado pela ganância dos grandes negócios, pelas fábulas de milhões de dólares e, por fim, enredado nas malhas de corporações que não se restringem a marcas de produtos esportivos. Onde passam a circular vastas somas de capital, a cobertura jornalística oficial tem de saber usar "calça curta". Nada melhor, portanto, que destinar a tarefa a seres crédulos ou radicalmente "inocentes", sempre prontos a recusar qualquer suspeita, seja na manipulação de competições, seja na fabricação de "ídolos", ou mesmo na "destruição" de outros, quando a situação se mostra interessante ? a exemplo de Maradona, a partir do momento em que passou ostensivamente a criticar e denunciar a FIFA.

O que, na origem, inibe a função crítica na cobertura de um esporte invadido pelos interesses corporativos do capital? É simples. Não mais os clubes e os campeonatos com suas narrativas e seus dramas se apresentam livres à autonomia de quem sobre eles escreverá ou em imagens mostrará. No novo enredo, uma notícia comprometedora quanto à lisura ou não de uma competição (ou de qualquer fato relativo a ela) passa a atingir a imagem da corporação patrocinadora. Isto é o suficiente para bloquear informações indesejáveis. Os ingênuos defensores do "esporte-empresa" não atentam para esse simplório detalhe.

Se milhões de dólares entram na transação de compra e venda de jogadores ? o que bem se presta à prática da lavagem de dinheiro ?, tudo passa a ser feito para impedir matérias que, embora verdadeiras, perturbem a trama financeira. Ainda mais grave se torna a situação se a empresa patrocinadora desse ou daquele clube for (e sempre o é ) anunciante no veículo de informação. E assim por diante… Enfim, onde a rede do capital entra, inevitavelmente mais um véu passa a cobrir o que seria a translúcida realidade. O esporte não teve desfecho diferente de outras áreas, a exemplo das artes. Sendo assim, outro caminho não resta senão vender ilusões, a fim de evitar que um maior número de pessoas perceba o tom cinzento da paisagem.

Reino encantado da idolatria

Quando a ilusão é proposta como realidade, firma-se entre as partes o pacto da ingenuidade, seja no âmbito de quem codifica a mensagem, seja no reduto a quem cabe decodificar. Nesse "contrato", não deve haver lugar para perturbações. Afinal, o mundo há de ser divino e maravilhoso, ainda que de mentirinha. É um mundo tão lindo e celestial que nele, por exemplo, habita a "Família Scolari" que, fora da retórica imbecilizada, significa apenas "seleção brasileira". De que cérebro infantilóide terá partido essa "idéia" e por quantos mais cérebros ela foi acolhida?

Que dizer do "fenômeno" que, numa esticada de perna, empurra a bola para as redes turcas, a míseros metros delas? Qual terá sido o "fenômeno"? Que excepcionalidade flagraram? E o gol do "fenômeno" contra a "poderosíssima" China? Ou será que a dimensão intensa atribuída a ocorrências quase banais é produto de "alteração de consciência cognitiva e perceptiva" por conta das contas das cervejarias e outras mais? É… faz sentido… cerveja também produz alterações… e sérias. O mundo do futebol sabe muito bem que sim. Aliás, o da música popular também.

Vamos indagar mais nessa intrincada rede do "reino encantado da idolatria juvenil". Terão sido as mãos da Moira (aquela deusa do antigo destino) a manobrarem as "ingênuas bolinhas" que, no santificado dia do sorteio, presentearam o país abençoado com adversários tão generosos quanto fraquinhos? Eis, porém, que as mãos protetoras do destino também transformaram em vice-presidente da douta Comissão de Arbitragem do Mundial justamente aquele que, em seu país, acabara de passar uma temporada sob o crivo das mais violentas denúncias. Que critérios terão sido usados para tal escolha? Não seria eticamente mais aconselhável que, em tais cargos, estivessem pessoas representantes de confederações ausentes da competição? No meu código, a resposta é sim. No deles, não. Por quê?

Por que um coreano preside a comissão, sendo a Coréia uma das duas sedes? Por que um juiz coreano é indicado para apitar o jogo inaugural de uma seleção de cuja confederação é presidente justamente aquele que na Comissão de Arbritragem ocupa a vice-presidência? Por que tal escala se deu justamente contra a única seleção que poderia oferecer alguma ameaça à beata e casta "Família-Scolari-seleção-brasileira"? E mais: justamente nesse jogo, o "juizinho" viu o pênalti salvador que ninguém mais, além do "beato" Scolari, viu. Para surpresa geral, até mesmo o nosso maior "locutor-promoter" reconheceu o erro "acertado" daquele "juizinho".

Bem, mas ainda faltava o maior dos atores que teria sido imediatamente "convocado" por Sófocles para protagonizar uma de suas inesquecíveis tragédias, ou talvez fosse disputado por Aristófanes, reconhecendo em Rivaldo um inigualável ator para suas comédias, que, muitos séculos depois, daria inveja a Gil Vicente, lamentando-se por não ter ator tão perfeito para encenar uma de suas farsas.

O elenco de questões iria para a prorrogação, dada a infinidade de "casos", incluindo situações passadas. Por outro lado, reconheço que tal incumbência seria de quem faz plantão em jornalismo esportivo (ou em delegacias?). Contudo, a depender dela, continuaremos órfãos e minoritariamente inexpressivos para não dizer desacreditados. Aguardemos, porém, que desfecho curioso terá essa Copa que, seguramente, não a venceremos e, provavelmente, também não a vencerá nenhuma seleção com a marca das "três barras", por obra e graça dos "adidos" do esporte. Sinistro!

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.