DIPLOMA EM XEQUE
Nilson Lage (*)
Não sei há quantos anos me fazem essa pergunta. Agora, uma vez mais: alguém de uma emissora de rádio telefona pedindo-me para opinar sobre a decisão de uma juíza paulista [Carla Abrantkoski Rister] que, depois de deixar passar bastante tempo, confirmou sua decisão liminar que extinguiu a exigência de formação superior específica para o exercício das funções de repórter, redator, editor e professor de jornalismo. A questão não é formulada exatamente assim: como das outras vezes, o repórter diz apenas: "Nós queremos saber o que o senhor acha do fim do diploma" [veja abaixo coleção de links para matérias sobre o assunto publicadas no OI].
É claro que, quando perguntam, já sabem.
Há momentos na história em que, como observa Wittgenstein, tudo que vale a pena ser dito não pode ser dito. Quando se trata de decisões de juizes, neste nosso estranho país, o caso é mais ou menos esse: o melhor critério é ficar calado; na melhor hipótese, medir milimetricamente as palavras. Porque, se uma singela criatura, apreciando petição singular, pode entender à sua maneira a Constituição aprovada pelo Congresso Nacional há 15 anos; declarar a inconstitucionalidade de uma lei cuja primeira versão é de 1962 e a versão final de 1968, há 35 anos; derrubar, afinal, uma regulamentação de profissão que data de 1938, isto é, há 65 anos ? então essa pessoa muito mais pode contra um mero funcionário público que estuda jornalismo há pouco menos de meio século. Pode perturbar sua paz, frustrar sua aposentadoria, fazê-lo gastar as economias de sua vida com advogados.
Pode tudo. E a gente se pergunta por que, sendo assim, precisamos de parlamentos, tribunais, prédios imensos cheios de funcionários e de gente que neles deposita suas esperanças. Seria muito mais barato confiar as decisões a um sábio desses, já que os recursos contra a sabedoria haurida por tais personagens nas faculdades de direito e homologada nos concursos públicos de província só será revista em anos, décadas, séculos…
Alojamento para bandidos
Todo mundo sabe que a construção da trama desse romance judicial deve-se a alguns grandes empresários e, em particular, a um deles, sujeito vaidoso, que tentou de todo jeito empregar os amigos ? um deles, hoje, personagem obrigatório das coberturas presidenciais ? e esbarrou na resistência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Trama longamente projetada.
Foi obra competente. Como se diz, a primeira desigualdade da cidadania ocorre quando se contrata um advogado. Não importa ter-se algum; importam quem, como e, principalmente, quanto.
Muitos jornalistas que ocupam cargos importantes apóiam a decisão. Primeiro, porque o progresso na carreira depende de se pensar como os patrões ? e esse traço é algo que se internaliza. Segundo, porque não se sentem em absoluto ameaçados. Não são eles os que pagarão a conta.
O que, de fato, está sendo atingido com a sentença?
Em primeiro lutar, a regulamentação profissional de 1938, conquista inicial de um longo processo que retirou do cenário ? pena que não inteiramente ? personagens sombrios cujas biografias, contadas agora, parecem ora histórias de terror, ora contos de fadas. Para um bom exemplo, leiam Cobras criadas, de Luiz Maklouf Carvalho (Editora Senac, São Paulo, 1999, 599 pp.).
Em segundo lugar, uma estrutura sindical pela qual a minha geração de jornalistas lutou por décadas, até expulsar os picaretas que controlavam os sindicatos negociando interesses da categoria com patrões e com governos. E isso ocorre justamente quando essa estrutura corrigida cuidava de criar mecanismos de controle ético eficazes, através de um conselho profissional, nos moldes da OAB.
Em terceiro lugar, o arcabouço jurídico que protegia jornalistas do arbítrio. Se qualquer pessoa pode se registrar como jornalista e beneficiar-se, assim, de prisão especial, é claro que isto será feito por todos os bandidos. E, como é impossível arrumar apartamentos em quartéis para todos os bandidos ou provar que não se é, em cada caso, bandido…
Tim-tim
Vínhamos batalhando para obrigar a rede de escolas superiores brasileiras, em que prevalece o comercialismo mais deslavado, a empregar exclusivamente jornalistas competentes no ensino das técnicas da profissão, em turmas pequenas. Agora, isso não vale mais. Pode-se colocar em sala de aula qualquer pessoa, a que cobre mais barato, e ensinar qualquer coisa dizendo aos alunos que jornalismo é aquilo. Por exemplo, tarô, Bakunin, Althusser, ecologia, A revolta das mulheres (recado às feministas: é uma peça de Aristófanes), moda e bordado, a teoria dos focos insurrecionais etc etc.
Há um mar de mestres e doutores em ciências inexatas sobrando por aí, doidos por um empreguinho desses. Laboratórios? Só para o MEC ver. E lá se vão as esperanças de milhares de jovens, que sonham fazer do jornalismo sua carreira e sua forma de vida.
O jornalismo perdeu sua cidadania. Volta a ser bico de estudantes de direito (não há desembargador idoso que não diga: "Eu também fui jornalista") e ocupação dos rebentos da classe dominante que pretendem fazer carreira política. Estes trabalham até de graça.
Com isso, outra grande campanha que se vinha fazendo, aos poucos, para moralizar e elevar o nível do jornalismo no interior do país ? onde ele é praticado, muitas vezes, de maneira absolutamente inadequada ?, fica muito prejudicada. Voltamos à época em que cada candidato a prefeito tem um cabo eleitoral idiota mas que poderá ser compensado com as comissões da propaganda oficial do município, imprimindo qualquer coisa parecida com um jornal.
Ao defender a formação superior, coisa que faço há três décadas, jamais pensei no Estado de S.Paulo, na Folha de S.Paulo ou mesmo na Rede Globo; estes se defendem bem. Pensava nesse país imenso, onde há grandes cidades e gente bonita, mas também selva, atraso e pobreza.
Ainda que a medida seja revista algum dia ? o que é problemático, porque alguns poderosos a defendem e nenhum a critica, mesmo aqueles já convencidos de que não se nasce competente ? , o prejuízo está feito. Voltaremos a ter assessores de imprensa analfabetos ou especializados em cerimonial, principalmente em órgãos públicos, onde não se avalia a função pelo desempenho.
Onde o Brasil liderava, voltou a ficar no fim da fila. Em algum lugar tilintam taças de champanha.
(*) Jornalista, professor titular de Jornalismo da UFSC