ELEIÇÃO NA TV
Maria Ribeiro (*)
A "grande mídia", através do espetáculo televisivo, foi capaz de perceber a facilidade do homem em captar eternos transitórios. As eleições estão aí e com elas o ladies and gentlemen tupiniquim.
Não há tranqüilidade de espírito diante da sucessão de imagens apresentada pelos programas eleitorais gratuitos e pelos telejornais, com menção honrosa à primeira edição do vespertino global, nesse período que antecede as eleições. A indisposição é orquestrada pela repetição exaustiva das palavras de ordem selecionadas pela "grande mídia" para circular entre as bocas dos telecidadãos: violência, desemprego, solidariedade, cidadania, desenvolvimento e crise. O espetáculo midiático, dentre tantas outras facetas dignas de registro, arrogou-se a representação política e a salvaguarda dos interesses da nação. Antes a questão fosse essa. Tão merecedor de compreensão que haja certo sentimento de desprezo pelo diagnóstico das questões subjacentes ao poder quanto precipitado qualquer proselitismo que envolva a condenação capital dos aparelhos de televisão.
Nem nos seus devaneios mais longínquos o senhor marechal Deodoro da Fonseca imaginaria investir as calças, das oligarquias simpatizantes que fique bem claro, em jingles e marketing eleitoral. Mas os tempos são outros, e não apenas para a tecnologia. Os otimistas baluartes da democracia repetiriam que chegamos à puberdade dos valores resguardados pela democracia, da liberdade de imprensa, dos direitos inalienáveis, da participação cidadã no cenário ? estricto sensu ? político. Sabemos que toda a adolescência transcorre perpassada por conflitos naturais e toda sorte de intempéries nem sempre previsíveis. Do popular: "Há males que vêm para bem", "Quem tudo quer nada tem" e o profético "Cada coisa a seu tempo". Esse discurso confiante é introjetado e um dado darwinismo político segue ornamentando, com gosto sob suspeição, os programas eleitorais gratuitos, os telejornais e os debates que prenunciam o 6 de outubro.
Em tempos de vacas gordas para a pirotecnia política seria preferível falarmos em sistemas de comunicação em vez do consagrado meio de comunicação. A distinção não é mera afetação de linguagem. Meios pressupõem a sugestão de um caminho, uma via. O que assistimos hoje, muitas vezes recolhidos num transe hipnótico, é à apresentação de verdades embaladas, preparadas para a deglutição rápida. Os conflitos são apresentados e solucionados com a rapidez de um comercial: os âncoras do chamado jornalismo comunitário, investidos de um politicismo drive thru, convocam o cidadão e o representante do poder público para o embate à la Celso Russomano.
Tablado eletrônico
Não se trata apenas da encenação de um conflito entre a esfera pública e o cidadão. A missa midiática, apoiada de maneira irrestrita pelo TSE com sua campanha "Vota Brasil", insiste na oração do homem de bem que luta pelos seus interesses acima de tudo e de todos. Se o povo vota de maneira consciente e permanece fiscalizando as ações públicas que mal poderia assolar a nação?
Relicário desatento da luta política ou figura digna de compaixão, a verdade é que o eleitor não se decide antes do capítulo final da novela politiqueira. Trata-se de observar o desempenho do candidato-ator para só então manifestar adesão. Em artigo publicado pelo Estado de S. Paulo, a especialista em análise de pesquisa eleitoral Fátima Pacheco Jordão revelou que era de 42% a taxa de indecisos às vésperas da estréia do horário eleitoral gratuito. Pesquisa semelhante, realizada na primeira dezena de agosto pelo Ibope, apontou para a exatamente mesma taxa de indecisão. Se o exercício da política não transforma invariavelmente os homens em encarnações do tinhoso coisa-ruim e, por outro lado, a mídia não é uma abstração inalcançável, por que raios a esquerda ainda é tida como um perigo para a sociedade civil, para a economia, para a sorte futura do universo?
Diante dos sintomas observados eu asseveraria: surto esquizofrênico. Com a queda do Muro de Berlim e a derrocada do socialismo real, aquelas palavras de ordem, antes recebidas pelo status quo com o sinal da cruz, foram adotadas pelo discurso oficial e perderam seu potencial de transformação. Hoje "participar" e "ser cidadão" é bonito, saudável, não provoca cáries nos dentes nem erupções na pele. Resultado: nem tanto ao céu nem tanto à terra. Grande parte da esquerda, ainda atordoada por conta daquela crise de identidade, decidiu-se por certa inclusão política em vez de sustentar o caráter revolucionário da oratória de tempos atrás.
"Estamos no tempo da ditadura da opinião pública organizada nas mídias. Um tempo em que os tiranos se apresentam como democratas juramentados como sempre em nome do povo, dos miseráveis, dos pobres, dos carentes, oprimidos e excluídos", diz o professor de Política Edson Passetti, da PUC-SP. "Não há mais o perigo da ditadura da opinião pública, da ditadura da maioria; hoje ela é governo."
Como em terra de midiotismo político opinião pública é sacrossanta, o jeito é defender até a morte ? civil, matada ou natural ? a autonomia de pensamento. A "democracia midiática", precisa síntese utilizada pelo professor Passetti, mantém sob tutela a "massa abúlica e covarde". Enquanto isso os candidatos-modelo-atriz emprestam suas vagas convicções ao "concurso para a gerência executiva do Estado Brasil". E não se pode contar nos dedos das mãos quem, com aqueles espasmos nervosos típicos de mãe de miss, aplaude o espetáculo.
(*) Estudante de Ciências Sociais da PUC-SP, 23 anos