Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O lado oculto de uma cobertura

MÍDIA & GOVERNO

Muniz Sodré (*)

Em seções diversas da imprensa carioca e paulista têm aparecido esporádicas associações entre o presidente Lula e Chauncey Gardiner, personagem do romance O Vidiota, de Jerzy Kosinski, vivido na tela do cinema (Muito além do jardim) por Peter Sellers. As comparações e metáforas presidenciais, geralmente baseadas em temas futebolísticos e rurais, lembrariam o mundo simplório do jardineiro de Kosinski.

No começo, não havia como deixar de ver nessas associações o retorno do velho preconceito cultural contra o operário convertido em líder político. Antes, eram os tropeços de linguagem; depois, a infração da forma reconhecida como culta para a abordagem de questões coletivas no espaço público. Na verdade, as metáforas de Lula não são menos cultas ou menos precisas do que os tautologismos embutidos no discurso fiscalista que goza de livre trânsito nas esferas oficiais e na imprensa. Com raras e honrosas exceções, cada sujeito da cultura economicista parece um Conselheiro Acácio da cartilha neoliberal.

O simplismo não está, com efeito, na forma da linguagem, nem na proveniência semântica das metáforas, e sim na redução da complexidade da questão social à simplicidade poderosa, mas enganadora, de um elemento único: a razão fiscal. É isto o que torna a fala de Lula radicalmente diferente da de Gardiner. O vocabulário pastoril do personagem de Kosinski não funcionava como biombo para projetos de alcance social que demandam uma discussão mais longa e mais aprofundada antes de qualquer decisão anunciada como inamovível, a exemplo da reforma da Previdência.

Em outras palavras, o problema não consiste na proliferação de aforismos, provérbios, fábulas ou metáforas, recursos de fácil comunicabilidade. São muitos os autores contemporâneos, de Paulo Coelho ao Dalai Lama, que se garantem editorialmente com esse tipo de linguagem. Problemática é a evolução dos argumentos fabulatórios contra um pano de fundo de um certo aparvalhamento do governo frente às pressões do "mercado", por um lado; por outro, frente à inércia da máquina burocrática, que deixa no ar incômoda impressão de que não se sabe muito bem o que fazer, exceto repetir as fórmulas de sempre das agências internacionais.

Problemático ainda é o tipo de política que viceja no jardim das parábolas simplistas. Uma delas, proferida num discurso presidencial em Pelotas (RS), é paradigmática: "A coisa que eu mais queria na minha vida, quando casei com a minha galega, era um filho. Ela engravidou logo no primeiro dia de casamento, porque pernambucano não deixa por menos. Mas tive que esperar nove meses para a criança nascer. Depois que nasceu, tive que esperar quase um ano para ele aprender a andar. Eu ficava sentado, falando: "anda, anda", e ele não andava. Alguém tinha que ensinar. O Brasil estava quebrado e alguém vai ter que salvar este país" (cf. O Globo).

Jardinagem argumentativa

Aos jornalistas não passou despercebido o constrangimento da primeira-dama, mas deixou de haver qualquer referência às implicações da comparação entre paternidade impaciente e realidade nacional. Há um pano de fundo redentorista e bonapartista nesse pequeno relato, que se transmutou em algo mais sério duas semanas depois, mais precisamente no dia 24 de junho, quando, em discurso de improviso na sede da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o chefe do Executivo referiu-se de modo perigosamente ambíguo aos dois outros poderes da República. Na transcrição de O Globo (25/6/03):


"Pode ficar certo que não tem chuva, não tem geada, não tem terremoto, não tem cara feia, não, tem Congresso Nacional, não tem Poder Judiciário. Só Deus será capaz de impedir que a gente faça esse país ocupar o lugar de destaque que ele nunca deveria ter deixado de ocupar".


A gradação retórica é preocupante: mistura natureza com cultura, fenômenos naturais adversos com diversidade de posições políticas e opõe, evangelicamente, Deus aos dois outros poderes da República. A historiadora Marly Silva da Mota lembrou oportunamente a semelhança da fala presidencial com o discurso usado tanto pela direita como pela esquerda nos anos 1950 e 1960.

Eram previsíveis tanto a reação de políticos e magistrados quanto as apressadas explicações do presidente da República, claramente esquecido de um de seus próprios provérbios: "O apressado come cru". Não houve nenhuma retratação, porém, para uma postura que se reproduz insidiosamente não apenas no presidente e no grupo palaciano, mas também na própria imprensa: o antiintelectualismo ressentido. No mesmo discurso na CNI, Lula reiterou: "Já conseguimos em seis meses, do ponto de vista de política internacional, aquilo que muitos que estudaram a vida inteira não conseguiram". Dias antes, o colunista Arnaldo Jabor, em O Globo, responsabilizava os intelectuais por terem "inviabilizado" o governo de FHC e, agora, por tentarem fazer o mesmo com Lula.

Todo esse ressentimento parece claramente esquecer-se de que a eleição de Lula, senão o próprio Lula, é um fenômeno produzido pela intelectualidade nacional, desde que o metalúrgico do ABC paulista converteu-se em líder político. Os mapas eleitorais sempre mostraram que a votação maciça no candidato petista acontecia nas zonas caracterizadas por maior instrução e dentro do raio de influência dos discursos intelectuais. A base eleitoral do PT não se definiu jamais apenas pelo diminuto operariado nacional, mas também e principalmente pela intelectualidade orgânica das universidades e do serviço público. Ao professor brasileiro ? classe sofrida, mal paga, geralmente maltratada pela imprensa e pelos regimes neoliberais ? não se opõe o nosso escasso cortador de cana como metáfora do lumpesinato. Opõe-se, sim, o Banco Mundial com suas cartilhas sobre a educação. Cortador de cana é referência cubana para a base da pirâmide trabalhista.

Uma imprensa voltada para a realidade nacional, e não para as suas aparências publicitariamente trabalhadas, deveria forçosamente insistir no esclarecimento do que significam hoje educação e serviço público universalista. No lugar disso, colunistas fazem graça e importantes revistas semanais dedicam-se continuadamente à estimulação tecnonarcísica da cosmética individual, em meio à crise generalizada da mídia, para a qual se tentam diagnósticos precisos. Uma boa sugestão é a reinjeção editorial de um espírito crítico que, indo além do simplismo da jardinagem argumentativa, consiga mobilizar os novos públicos, jovens e ávidos por transformações reais na paisagem nacional.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro