TRAGÉDIA NO ESPAÇO
Ulisses Capozzoli (*)
Três dias após o acidente que desintegrou o Columbia, no retorno do ônibus espacial da órbita baixa da Terra, a imprensa preenche a falta de informações sobre o que aconteceu com dados irrelevantes, supervalorizados e perde a oportunidade de trabalhar alguns conceitos interessantes como a idéia de "gravidade zero".
Já em seguida ao acidente, no sábado (1/2), um apresentador de TV, que permaneceu todo o tempo no ar cobrindo o acidente, insistia em definir o Columbia como uma "aeronave".
Aeronaves, ou naves aéreas, como a palavra indica, não atingem a órbita da Terra, além da atmosfera. O Columbia e outros dos transportadores espaciais da Nasa fazem isso e são espaçonaves, não "aeronaves", embora, para muitos, certamente trate-se de distinção irrelevante. Algo equivalente a dizer que um tubarão tem o corpo aerodinâmico, como freqüentemente ocorre, como se tubarões se deslocassem pelo ar e não pela água, onde suas formas são, de fato, hidrodinâmicas.
O acidente que destruiu a nave e tirou a vida de seus sete ocupantes poderá ter suas causas identificadas nas próximas semanas, consumir meses de trabalho antes que isso aconteça, ou nunca ser inteiramente conhecido ? admitem os técnicos da agência espacial norte-americana.
Essa situação, justificada pela complexidade da operação, não desestimula avaliações como a transmitida por um pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na edição de segunda-feira (pág. A11) de O Estado de S.Paulo.
O pesquisador comparou, segundo reproduziu entre aspas a repórter, que "um ônibus espacial não é como um ônibus de linha que quebra no meio da estrada e pode ser consertado, ou os passageiros transportados por um socorro. Infelizmente não é assim que funciona e os astronautas sabem disso".
Como se vê, a percepção que se tem do destinatário final da informação, o leitor que financia as pesquisas com seus impostos, é mais que elementar.
Por suposto que um ônibus espacial não é algo semelhante a um ônibus de turistas ou de escolares. Se alguém for incapaz de compreender isso, então não terá como acessar qualquer uma das outras informações relacionadas ao acidente. Não será possível, por exemplo, fazer uma abstração entre a superfície da Terra e ambiente espacial.
Miopia espacial
A velha discussão entre um pretenso desencontro entre jornalistas e pesquisadores científicos, quando os primeiros não reproduziriam corretamente a linguagem de seus interlocutores, revela, em momentos como este, toda a sua falsidade. O problema é de inteligibilidade (ou ausência dela).
O apresentador de TV, no sábado, já havia criado clima quando anunciou que antes de os ônibus remanescentes voltarem a voar seria preciso retirar a tripulação (dois norte-americanos e um russo) atualmente a bordo da estação espacial. Naves russas Soyuz, para passageiros, podem fazer isso sem maiores dificuldades.
Em casos como este, a falta de informação cria um estresse desnecessário junto à população. Evidentemente que ninguém aprova a idéia de que pessoas possam morrer por diferentes razões enquanto giram em torno da Terra sem que se possa fazer alguma coisa.
Docagem (atracação) de naves russas já foram feitas junto à estação espacial que está sendo montada em órbita. E, como resultado do acidente, já foi definido que uma nave cargueira Progresso, lançada por um foguete, irá levar alimentos e outras necessidades para a estação espacial a fim de se prolongar a estadia da tripulação em órbita.
Outra dificuldade são os exageros. Como o de argumentar que o acidente afeta programas científicos do Brasil. Alguns experimentos, dos poucos que o Brasil desenvolve em ambiente de imponderabilidade (ausência de peso) podem vir a ser adiados. Mas nenhum deles é importante demais, nem tem peso econômico suficiente, para justificar essa abordagem. É um exemplo de caso supervalorizado.
Até agora, ninguém se referiu a um eventual atraso do programa espacial brasileiro como consequência do acidente. Mas pode ser que se fale disso nestes dias seguintes.
O programa espacial brasileiro está mais de 40 anos atrasado.
Deflagrado em 1961, pelo então presidente Jânio Quadros, desenhou metas que nunca foram alcançadas. Até agora, o Brasil não conseguiu desenvolver, em escala comercial, seu foguete lançador de satélites ? o VLS.
Os satélites de comunicação, previstos para o final do século passado, também não foram concluídos e centros de pesquisa como o próprio Inpe estão desmotivados por redução de salários, entre outras dificuldades que praticamente fizeram um desmonte junto ao pessoal de pesquisas.
O que o Brasil tentou fazer, ao menos durante o governo FHC, foi ter seu próprio astronauta. Mas de que adianta um astronauta se o programa espacial está esgarçado e a infra-estrutura de produção de ciência, como institutos de pesquisa e as universidades federais, estarem comprometidos pela falta de cuidados?
De imediato, certamente uma das relações mais interessantes seria tentar saber em que medida um acidente como este (que mexe com o imaginário norte-americano, onde o espaço substituiu os horizontes e o novo herói é um astronauta, não um velho caubói) afeta os ânimos de guerra.
Este não é mais um assunto restrito à astronáutica, embora a exploração espacial e as máquinas de guerra estejam intimamente relacionadas. Analistas políticos, estrategistas e psicólogos, entre outros, devem entrar em cena nos próximos dias.
A máquina de guerra norte-americana, voltada para um ataque que parece iminente ao Iraque, depende, agora, de orientação de um colar de satélites do sistema GPS para orientar bombas inteligentes e atingir seus alvos com precisão inédita na história de conflitos armados.
A guerra anterior, no Golfo, já está tecnologicamente superada e mesmo os conflitos no Afeganistão, ainda não concluídos, permitiram a sofisticação de armas que os "falcões" estão ansiosos para experimentar no Iraque.
Os satélites, além da guiagem de bombas que justificariam uma pretensa precisão de alvos no Iraque, também fornecem informações cruciais envolvendo transporte de material e deslocamentos de tropas/veículos, entre outras informações.
Claro que na ausência dos transportadores espaciais podem ser utilizados foguetes lançadores. Em todo caso, a possibilidade de recaptura e recuperação em órbita de satélites de uso militar fica descartada sem a atuação dos ônibus espaciais.
Não é recente a oposição de boa parte da comunidade científica norte-americana contra os transportadores espaciais. Para seus críticos, os ônibus poderiam ser perfeitamente substituídos por foguetes lançadores. Mas foram interesses militares, entre outros, que levaram ao desenvolvimento da atual geração de espaçonaves orbitais ? ainda que não se possa esquecer os bons serviços prestados pela frota de lançadores à boa pesquisa científica. Foi a bordo de um dos lançadores da frota da Nasa que o satélite espacial Hubble foi conduzido para que recebesse uma lente corretiva capaz de reparar sua miopia espacial, produzida por uma deformação em seu espelho principal. Os defeitos no espelho se deveram a restrições de inspeção relacionada á segurança ainda no período da Guerra Fria.
Missões adiadas
Nos próximos dias, analistas internacionais devem começar a tecer relações entre o acidente e o progresso da guerra. Há uma dimensão nada racional em acontecimentos desse tipo.
A exploração espacial norte-americana é parte dos orgulhos maiores daquele país. Um acidente como o sofrido pelo Columbia atinge profundamente os ânimos, rompendo com a racionalidade dos procedimentos e trazendo de volta a tragédia.
Pode ser até que a guerra produza uma sublimação desses sentimentos e possa ser ainda mais impiedosa, se é que uma expressão como esta faz algum sentido. Ou, ao menos para o público interno, o drama do Columbia pode ter algum efeito ? certamente não o de evitar uma guerra, mas na sua condução. Especialmente se não for tudo muito rápido, como se avalia.
Observadores mais apressados certamente não vêem qualquer relação entre um e outro fato, como se a objetividade não sofresse flutuações e, em alguns momentos críticos, como na presença da morte, perdesse o sentido. Não da morte anunciada onde, num rito moderno, os soldados deixam às suas esposas doses de sêmem congelados para que possam ampliar ou formar suas famílias mesmo depois de mortos. O acidente com o Columbia traz a morte surpreendente, inesperada, em que a ação humana não se faz sentir como forma de evitar a tragédia.
Os jornais contabilizam o atraso que o programa espacial internacional deverá sofrer em conseqüência do acidente. É, de certa maneira, uma visão linear dos acontecimentos.
Pode-se dizer, evidentemente, que a montagem da estação será retardada por um determinado tempo. Em relação ao que foi perdido, no entanto, nunca se poderá saber. Várias outras missões tripuladas estão previstas para este ano e deverão ser adiadas. Poderiam, agora, com lançamento de instrumentos científicos, detectar acontecimentos que não seriam possíveis no futuro. Ou, ao contrário, o atraso pode contribuir para descobertas que não teriam como ser feitas em outro momento.
Caos absoluto
Serendipidade é o nome pelo qual os historiadores da ciência conhecem acontecimentos assim. A visão linear apresenta o desenvolvimento da ciência como resultado direto da racionalidade. Mas isso está longe da verdade. O acaso se intromete a todo momento para alterar as condições. Para melhor ou par pior.
A busca do conhecimento não é uma procura linear, com os fatos mecanicamente atados uns aos outros. Os deuses são mais complexos em seus desejos, para se recorrer ao pensamento grego ? cultura na qual a tragédia foi examinada à exaustão em busca de um sentido para a vida humana.
Na falta de informações novas, talvez fosse interessante a mídia retomar conceitos como "gravidade zero".
Muita gente pode estar pensando que se a gravidade, a pouco mais de 300 quilômetros da superfície da Terra, é zero, como é possível que a Lua continue girando em torno da Terra?
Em 1686-7, rompendo com o obscurantismo envolvendo a visita de cometas, Isaac Newton, a pedido de Edmond Halley, estabeleceu a gravitação universal onde a atração entre os corpos é diretamente proporcional às suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância.
Com base em Newton, a gravidade da Terra não cessa em nenhum ponto do Universo, embora enfraqueça com o aumento da distância, da mesma forma que uma fonte luminosa.
A imponderabilidade (ausência de peso) em órbita é resultado da interação de duas forças, a centrípeta e a centrífuga.
A centrípeta é a própria atração da gravidade, enquanto a centrífuga é a tendência da nave de escapar como uma pedra presa à ponta de um cordel que um experimentador faz girar em torno de sua mão. Se o cordel se parte, a força centrífuga lança a pedra à distância, impulsionada pelo movimento da mão do experimentador.
A imponderabilidade é produzida pelo equilíbrio entre essas duas forças e lembra as turbulências atmosféricas, quando os aviões têm uma queda momentânea pelo "vácuo" ? na realidade, células de ar em afundamento na dinâmica atmosférica.
Se por alguma razão espantosa a gravidade deixasse de funcionar, não apenas seríamos atirados ao espaço pelo movimento de rotação da Terra como o caos se apresentaria absoluto em todo o Universo.
Erodida e calcinada
O jornalismo impresso, especialmente, deve fornecer informações adicionais mais consistentes em situações assim, caso contrário não irá sobreviver ao poder de fogo da internet.
Com o acidente, o efeito mais imediato é o adiamento de novos lançamentos até que se saiba, com algum grau de aceitação, o que pode ter ocorrido. De qualquer maneira, desde já a expressão para definir o que ocorreu é "desintegração" na viagem de retorno, e não "explosão".
Uma explosão, a 60 mil metros, teria espalhado detritos por uma área mais vasta.
O Columbia desceu como um meteorito que chega do espaço, embora com velocidade menor do que a desses corpos.
A nave foi erodida e calcinada pela atmosfera, um dos escudos mais surpreendentes para a proteção da vida na Terra.
Superadas as dificuldades, os lançamentos continuarão pelas razões mais diferentes. Uma delas foi apresentada justamente pelo pai da Astronáutica, o professor de escola rural da Rússia, Konstantin Tsiolkovski (1857-1935).
Utilizando outras palavras, Tsiolkoski disse que "a terra é o berço da humanidade, mas ninguém pode viver eternamente no berço".
(*) Jornalista, mestre em Ciências pela USP, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) e editor de Scientific American Brasil