Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O legado ético de Perseu Abramo e de Aloysio Biondi

CONTRA A MANIPULAÇÃO

José Arbex Jr. (*)



Padrões de manipulação na grande
imprensa, um ensaio
inédito de Perseu Abramo, com posfácio de Aloysio
Biondi,
Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo,
2003



A "grande mídia" brasileira é uma das mais competentes do planeta. A Rede Globo está entre as cinco maiores redes de canal aberto do mundo; seus programas, não importa o gênero ? jornalismo, entretenimento, novelas ?, exibem qualidade técnica espetacular, são artigo de exportação. A mídia impressa, tecnicamente, nada fica a dever a qualquer grande jornal, mesmo que se incluam na lista os americanos The New York Times, The Washington Post e Los Angeles Times. As campanhas publicitárias brasileiras são mundialmente famosas ? e premiadas ? pela ousadia de sua linguagem, por sua grande qualidade estética, por sua capacidade de sedução.

Azar o nosso.

Nossos dois grandes mestres, Perseu Abramo e Aloysio Biondi, demonstram detalhadamente, nos textos aqui apresentados, que a "grande mídia" constitui, hoje ? com todas as suas complexidades, os seus paradoxos e suas contradições ?, uma coluna de sustentação do poder. Ela é imprescindível como fonte legitimadora das medidas políticas anunciadas pelos governantes e das "estratégias de mercado" adotadas pelas grandes corporações e pelo capital financeiro. Constrói consensos, educa percepções, produz "realidades" parciais apresentadas como a totalidade do mundo, mente, distorce os fatos, falsifica, mistifica ? atua, enfim, como um "partido" que, proclamando-se porta-voz e espelho dos "interesses gerais" da sociedade civil, defende os interesses específicos de seus proprietários privados.

Ambos, Abramo e Biondi, mostram com grande acuidade analítica como isso é feito. Explicitam os "padrões de manipulação", as operações normalmente utilizadas para produzir determinados efeitos. Fornecem um guia para os que querem aprender a "ler" a mídia. Abramo analisa a imprensa escrita, a televisão (especificamente o "padrão global" de comunicação) e o rádio; Biondi detém-se particularmente na imprensa escrita, embora, obviamente, não haja nenhum "muro de Berlim" separando o procedimento de manipulação entre as várias modalidades. Ao contrário.

O texto de Abramo é de 1988. Anterior, portanto, à cobertura da Guerra do Golfo (janeiro/fevereiro de 1991), quando a cnn (Cable News Network) instalou-se, definitivamente, como rede planetária de transmissão instantânea (em tempo real) de imagens e notícias. A cobertura foi, em si mesma, uma proeza de mistificação, um "divisor de águas" na história da mídia. Vimos, pela televisão, que "ninguém morreu" em uma guerra que matou pelo menos 140 mil pessoas. Pela primeira vez na história da humanidade, a tecnologia ? e não o homem ? foi o centro da cobertura de uma guerra: tanto a tecnologia empregada na produção das armas supostamente "inteligentes" e "cirúrgicas" como a que permitia o funcionamento da própria CNN. A dor, o sangue e a morte desapareceram das telas (assim como, em 11 de setembro de 2001, ninguém viu os corpos das vítimas do atentado terrorista; não interessava mostrá-los, quando George Bush júnior preparava a opinião pública de seu país para uma nova guerra).

A "revolução conservadora" propiciada pela tecnologia introduziu pelo menos um novo "padrão de manipulação" não analisado por Abramo: o que permite fabricar socialmente a amnésia, mediante a imposição da velocidade informativa. Notícias do mundo inteiro são despejadas em tamanha quantidade, e com tanta rapidez, que mal tomamos conhecimento de um assunto e logo outro já ocupa os telejornais e, conseqüentemente, as manchetes da mídia impressa, fazendo que rapidamente seja esquecido aquilo que havia pouco ainda era considerado "fundamental". A "aceleração tecnológica" do mundo prova-se um eficaz instrumento de dominação.

O próprio Abramo nota isso, durante um discurso feito aos estudantes de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), durante uma cerimônia realizada pelos alunos em sua homenagem, em dezembro de 1995 (três meses antes de sua morte):


"O maior desafio desta nossa profissão nos dias de hoje é a distância entre a técnica e a ética. Cada vez mais, avançam as novas tecnologias, a informática, a telemática, a transmissão por satélites, ondas hertzianas, fibras óticas, "estradas eletrônicas", infovias, telefone celular, fax, computador, modem, a internet e outras redes. E, cada vez mais, o poder político e econômico dos grandes impérios empresariais e multinacionais da comunicação se concentra em um número cada vez menor de poucas mãos […] Por isso, peço aos meus colegas jornalistas que hoje se formam licença para alguns lembretes. Não se deixem deslumbrar pelas técnicas e pelas novas tecnologias. Elas de nada valem, se não forem utilizadas com profundo sentido ético e com a visão clara de que a imensa maioria da sociedade, em todos os países, ainda luta para libertar-se da exploração, da opressão, da desigualdade e da injustiça".


Biondi denunciou incessantemente uma grande "armação" chamada Plano Real, da qual o processo de privatizações das empresas estatais constituiu coluna mestra (e antes disso, nas décadas de 1960 e 1970, desmascarou com grande coragem a farsa do "milagre econômico" arquitetada pelo signatário do ai-5, Delfim Netto). Com humor cáustico, linguagem simples e incrível capacidade de extrair do cotidiano os fatos que demonstram as suas denúncias, ele nos ensinou a "desmontar" as notícias estampadas nos jornais. Mostrou os artifícios que permitem aos jornais afirmar, em manchetes, o contrário do que realmente aconteceu.

Enquanto jornalistas e "especialistas" regiamente pagos e promovidos ? os tais "intelectuais jornalistas" de que fala Pierre Bourdieu ? enalteciam (e enaltecem) as virtudes da "estabilidade econômica", fechando os olhos para a devastação produzida no país pelo Fundo Monetário Internacional (fmi) e pelo capital financeiro (da qual a Argentina é hoje um trágico resultado), Biondi e Abramo nunca tiveram receio de manter uma posição crítica firme, eventualmente solitária, mas sempre coerente com seus princípios éticos. "Ética", para eles, não era uma palavra vazia, a ser usada em grandes discursos para, em seguida, ser arquivada como um adorno "politicamente correto" (quem teve o privilégio de conhecê-los sabe que nada poderia ser-lhes mais estranho do que a demagogia ou a vontade de agradar). "Ética" era um pressuposto necessário, vital à atividade jornalística.

Apesar de todas as evidências, é comum encontrar os que julgam ser exagero falar em manipulação da mídia. Muitos acreditam que a prática da manipulação deliberada aplica-se, no máximo, aos grandes fatos internacionais (por exemplo, a Guerra do Golfo), quando estão em jogo os interesses de Estado associados aos das megacorporações, e que muitas vezes uma notícia mal dada ou um fato simplesmente ignorado é muito mais resultado de desinformação do jornalista do que da vontade dos donos das empresas de comunicação. Claro que a ignorância e a estupidez cumprem a sua parte, ninguém nega isso. Mas é igualmente claro que a determinação de manipular a notícia também existe.

Cometo agora a ousadia de contar apenas um exemplo muito objetivo e inequívoco, do qual fui e sou testemunha. Em meados de 1999, a revista Caros Amigos (da qual sou editor) recebeu a denúncia de que, no Paraná, jagunços estavam perseguindo, assassinando e torturando militantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), com a conivência e eventual participação da Polícia Militar (PM). Minha primeira reação foi de ceticismo. Afinal, o governador Jaime Lerner sempre fora apresentado pela "grande mídia" como um sujeito culto, "moderno", político de "primeiro mundo". E nunca aparecera nada sobre o assunto nos grandes jornais.

Mas a fonte era séria ? João Pedro Stedile, o "satanizado" membro da direção nacional do MST ?, e por isso fui ao Paraná para averiguar os fatos. Era tudo verdade. Obtivemos uma fita de vídeo, cedida por um oficial da PM-PR motivado por "conflitos de consciência", que mostrava uma "operação de despejo" de um acampamento do MST. Na fita, dezenas de camburões da PM cercam um acampamento, de madrugada (o que é proibido por lei), enquanto soldados, segurando cães ferozes, disparam para o ar tiros de pistolas e fuzis. Os barracos de lona são destruídos, as famílias (incluindo mulheres e crianças) são arrancadas da cama; os homens, nus ou seminus, são obrigados a deitar-se de bruços sobre o chão úmido gelado (a operação acontece em maio), as mulheres são ameaçadas de estupro diante dos filhos.

Apesar das evidências, o governador negou tudo, assim como o seu secretário de Segurança Pública, Cândido Martins de Oliveira, ou "Candinho" (mais tarde, implicado em escândalo de narcotráfico). Só que durante o "civilizado" governo Lerner haviam sido presos, até junho de 1999, mais de 200 integrantes do MST, seis comprovadamente torturados, 15 mortos, além de terem ocorrido outros 30 atentados e 41 ameaças de morte. A reportagem ganhou o Prêmio Vladimir Herzog (aliás, criado por iniciativa de Perseu Abramo, em 1977). Claro que nada disso foi noticiado pela "grande mídia", exceto por pequenas notas, aqui e ali.

A partir desses fatos, o MST tornou-se tema permanente da Caros Amigos. Por essa razão, posso afirmar com muita tranqüilidade que os casos de manipulação da informação contra o mst multiplicam-se, em profusão. Basta citar, se quiserem outro exemplo, o deplorável envolvimento do jornalista Josias de Souza, da Folha de S.Paulo. Em maio de 2000, Josias fez um estardalhaço, com a "denúncia" de uma suposta "prática de corrupção" pelo MST. Não só não se comprovou coisa alguma, como o jornalista foi obrigado a admitir ter feito sua "reportagem" devidamente orientado por técnicos do governo, que também forneceu os veículos utilizados nas visitas aos assentamentos!

Em síntese, se a "grande mídia" forma, hoje, uma espécie de Ministério da Verdade orwelliano, encarregado de manipular as informações sobre a realidade, produzir amnésia e criar consensos, nós podemos, em contrapartida, confeccionar uma Grande Enciclopédia das Manipulações, adotando os métodos e as recomendações feitas por Perseu Abramo e por Aloysio Biondi. Mais do que textos analíticos, eles nos deixaram como legado as suas atitudes em face do mundo e da profissão.

Sorte nossa.

(*) Editor do jornal Brasil de Fato, editor especial da revista Caros Amigos, professor de jornalismo na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp)