Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O livro e a leitura no Brasil

ATRÁS DA LETRAS

A leitura rarefeita ? leitura e livro no Brasil, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, 144 pp., Editora Ática, São Paulo, 2002. Informações: <www.atica.com.br>; e-mail: <editorial@atica.com.br>

Lançado originalmente em 1991, pela Editora Brasiliense, este livro examina os percalços ocorridos até que literatura e leitura se transformassem em práticas sociais realmente efetivas num país periférico e dependente como o Brasil, que até hoje não viu completar-se o seu processo de modernização. Pareceu às autoras oportuno reeditar a obra de cuja elaboração nasceu a pesquisa que resultou nos volumes A formação da leitura no Brasil e O preço da leitura: leis e números por detrás das letras, ambos lançados pela Editora Ática.

A seguir, os textos do primeiro e do último capítulos de A leitura rarefeita.

Marisa Lajolo e Regina Zilberman


O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se

no mesmo impasse

Carlos Drummond de Andrade


Num país como o Brasil, em que os problemas de circulação e leitura de obras literárias começaram com a ocupação do território e arrastam-se até hoje, parece oportuno investigar as formas de inserção social da literatura. Na investigação proposta, o horizonte social é a condição brasileira de nação periférica e dependente, que procura insistentemente realizar, mas acaba sempre adiando e depois recomeçando, sua revolução burguesa. Revolução que se pode discutir se é ou não essencial para a emancipação definitiva dos laços coloniais; mas que é, seguramente, imprescindível para a produção e circulação de literatura.

Alguns pressupostos balizam a discussão aqui proposta.

O primeiro apóia-se numa certa sociologia da cultura, que ensina que apenas nas sociedades burguesas ou em processo de aburguesamento um determinado tipo de escritura, circulando no interior de uma dada prática social de leitura e escrita, assume traços específicos e identifica-se com o que modernamente se chama de literatura.

Eis por que, quando se examinam os intercâmbios entre a literatura e a sociedade, não importa apenas a maneira como os textos representam as relações sociais engendradas por determinado modo de produção, mas importa, também e principalmente, a forma como o texto encena sua inserção no sistema de produção.

É nesse sentido que se entende o texto literário como metalingüístico: não somente por ele tematizar seu processo de produção ? colocando en abyme seu aparecimento enquanto discurso artístico e percebendo-se como entidade autocentrada, direcionada umbilicalmente para si mesmo enquanto sistema fechado ?, mas também por apontar para as articulações que mantém como sistema aberto de significações, com o aparato cultural que o sustenta, viabiliza, interpreta e contextualiza. Noutra formulação: cada texto não apenas representa sua poética, mas, ao mesmo tempo, delineia e instiga certos modos de recepção e de leitura, antecipando e orquestrando, rompendo e/ou contradizendo suas possibilidades de diálogo com a sociedade.

Outro pressuposto vincula-se a certas características da história nacional. No Brasil, cuja ocupação, já no século 16, ocorreu no bojo do mercantilismo, verifica-se o esforço constante ? sempre, porém, inacabado ? de integrar-se o mais completamente possível aos padrões e rumos do capitalismo internacional por meio da concretização da revolução burguesa. Tal propósito, no entanto, frustra-se a cada passo, o que, impedindo a modernização da sociedade, coloca o sistema literário numa situação peculiar: a cada parcela de sua trajetória, ele parece refluir, recuando para momentos anteriores do projeto de modernização e tornando assim ? mesmo que involuntariamente ? recorrentes as iniciativas de modernização, sempre recomeçadas e inconclusas.

Como se disse antes, a literatura, concebida como parte do sistema cultural que acompanha a modernização de tipo capitalista, parece exigir contexto e horizontes burgueses.

Como dar certo em países como o Brasil, periféricos e dependentes, onde o processo de aburguesamento não se completa nunca ou, dizendo de outra maneira, onde o aburguesamento concretiza-se apenas parcialmente em alguns segmentos sociais, deixando outros inalterados? Em tal contexto, o sistema cultural tende à repetição, e a literatura parece atrofiar-se, se e quando lida, analisada e discutida com olhos, valores e categorias sugeridos por criações artísticas e aparelhos intelectuais vigentes em condições de funcionamento pleno da sociedade burguesa, fruto das revoluções ocorridas antes do século 19.

Um terceiro pressuposto incide sobre as sutis relações entre a literatura e a sociedade, relações essas que não se visibilizam por meio de categorias, nem de procedimentos de ordem estritamente textual, embora uma tradição estética privilegie essa dimensão. Na tentativa de superar a estreiteza de tais categorias, cabe fazer um viés que veja a literatura como prática social específica de escrita e leitura. Prática que, se supõe a existência de um texto que recebe o atributo de literário, supõe, aquém e além dele, uma rede, cujas malhas, menos ou mais fechadas, proporcionam intercâmbio entre diferentes esferas, instâncias, formações, tecnologias, saberes, instituições e projetos que integram e delimitam o campo no qual um texto se literariza ou se desliterariza. Segue-se uma descrição sumária do campo no qual ocorrem tais processos.

No contexto da sociedade moderna, a literatura não pôde se constituir em prática social difundida e incorporada ao cotidiano antes da descoberta da imprensa, no século 15, e de seu aperfeiçoamento, no século 18, adequando sua tecnologia à produção e distribuição, em escala industrial, de livros, revistas, jornais e veículos similares, convertidos em portadores legítimos de textos escritos.

No mesmo sentido, foi igualmente necessária a consolidação de um sistema de comercialização desses objetos, postos em circulação por editoras, distribuidoras, livrarias. Satisfazendo ou criando a demanda de um contingente de consumidores, tais instâncias, de cunho privado ou público, mobilizaram um mercado e transformaram a literatura em mercadoria.

Foi preciso também desenvolver legislação que regulasse o funcionamento das diferentes e sucessivas etapas do processo econômico, da produção ou importação do papel à implantação de um parque gráfico, da fixação dos direitos do autor à remuneração dos intermediários que participam da industrialização e comercialização de obras escritas.

Outras exigências igualmente indispensáveis incluíram a formulação de uma política educacional que patrocinasse efetiva e indiscriminada alfabetização da população infantil, existência e expansão de uma rede escolar eficiente, criação e apoio a instituições que democratizassem o acesso aos livros, fundação e fortalecimento de organismos que difundissem e defendessem essa mesma política de que são fruto.

Também imprescindível foi o mais impalpável, mas nem por isso menos essencial, elemento da prática social da leitura e escrita literárias: a formação discursiva coesa e unitária, embora às vezes polêmica, que legitima a literatura. Quer atribuindo à literatura características de entidade autônoma e auto-suficiente, quer identificando nela marcas do desenvolvimento histórico das forças produtivas, quer promovendo sua desistorização e universalização ou proclamando sua instabilidade e incompletude, o discurso sobre a literatura torna-se condição de sua institucionalização e de seu enraizamento na sociedade.

Se a literatura, como prática resultante de uma dada organização da sociedade, incorpora todos esses aspectos, cabe buscar suas manifestações, se desejamos estudá-la. Para tanto, supôs-se que os textos, metalingüisticamente, encenam esses cruzamentos com o sistema literário, sendo, portanto, o estudo deles essencial para uma compreensão da literatura que ultrapasse a mera descrição dos constituintes estruturais dos textos.

Entender a literatura escrita e publicada no Brasil significa, no presente trabalho, aceitar suas peculiaridades como resposta às tendências de nossa sociedade: como as condições para o artista criar são precárias, obrigando-o, de algum modo, a tomar uma atitude para ajudar a resolver, ainda que momentaneamente, o problema, sua literatura pode se mostrar inferior àquela dos países nos quais o problema não existe.

Durante o período estudado, as mudanças econômicas facultaram a emergência de uma classe social capaz de formular um programa burguês para o Brasil, que culminaria na emancipação política. Apesar da separação de Portugal, a intenção fracassou: a nova nação não superou a organização importada da fase colonial, nem teve condições de se modernizar. No plano cultural, persistiu a precariedade dos meios de produção intelectual, de que adveio um profundo desencontro entre as expectativas do projeto e seus resultados.

Eis talvez o problema central que define o funcionamento da literatura no Brasil ao longo do período do qual se ocupa este livro e que começa com os jesuítas, que aqui desembarcaram no século 16 e dos quais se ocupa o próximo capítulo.

M.L. e R.Z.

Antes que se enverede pela travessia de memórias póstumas, ateneus, sertões e policarpos, um balanço do percurso coberto por este livro mostra que leitura, livros e literatura no Brasil chegaram aos meados do século 19 se não com mais credibilidade, ao menos com visibilidade maior que a desfrutada por volta da Independência.

Entre diferentes tipos de publicações e variados modelos de instituições, leitores e escritores começam a estabelecer uma relação mais complexa, em tudo adequada a uma sociedade que também se quer moderna. A literatura brasileira, já então dispondo do discurso legitimador da história literária e contando com uma tradição que lhe permite auto-referenciar-se, multiplica e matiza as imagens que registra de si mesma em linhas e entrelinhas. Encontra novas formas de inserção social, sem, contudo, abandonar o inconcluso projeto de afiançar pelas letras a modernização do país.

É o tempo de criação da Academia Brasileira de Letras, da relativa profissionalização do escritor, do fortalecimento de editoras voltadas para o mercado escolar e infantil, do efetivo aumento do número de escolas, do acirramento das discussões sobre a língua brasileira. Tudo isso, em curso num Brasil em vésperas de abolir império e escravidão, será a contrapartida que o mundo da cultura letrada oferece ao mundo do capital, por esse mesmo tempo também em busca das respostas necessárias ao novo projeto de modernização a ser assumido.

Tais projetos fundem os séculos 19 e 20 num movimento complexo que tanto retarda a eclosão de nossa modernidade enquanto configuração social, quanto, ao contrário, faz com que, na condição de projeto, ela remonte a meados do século 19 e às manifestações aqui examinadas.