SERRA DAS ALMAS
Sanderson Negreiros (*)
O Guerreiro do Yaco ? memórias e lendas de Zé Rufino, de Calazans Fernandes, primeiro volume da trilogia Serra das Almas, 318 pp., Fundação José Augusto, Natal (RN), 2002
Fácil é entrar na catarse de Calazans Fernandes. Difícil é dela encontrar a porta de saída. Serra das Almas é a perpetração neobarroca de alguém com capacidade de ser múltiplo, vário. Entre a metáfora e a simplicidade do escrever veloz e arrebatador. Mas que se alonga na sinfonia dos pássaros, no sombreado das moitas. No condoreiro pio sincopado da juriti, na chegada da chuva.
Este livro revela um escritor dramático da memorialística nacional. Nele, Calazans encarna o milagre da sobrevivência de figuras que continuam obstinadamente simples, no começo do mundo, o olhar fixo no horizonte a perguntar: “Quem sou eu? De onde vim? Qual é o meu nome?”
O prosador amanheceu menino na solidão das redações dos jornais mais importantes. Nos plantões das madrugadas, entre flagrantes do submundo do crime, dos negócios e da política, incorporou uma escrita ligeira capaz de se elevar à categoria da grande literatura brasileira.
A trabalho, visitou ele não sei quantas nações em todos Continentes. Conheceu ricos, pobres, heróis, tiranos, planícies, desertos e montanhas. Os hemisférios da guerra e da paz. Entrevistou os grandes estadistas do século. Estadeou com a velocidade do repórter maior os caminhos da aventura. Fez-se cidadão plenipotenciário da humanidade.
Perdido nos igarapés da Amazônia, em busca de um militar desaparecido no meio dos índios, maravilhou-se com o espanto das águas, que Euclides da Cunha disse serem grandiosas, como o primeiro dia da Criação.
Das águas magistrais, ele se embrenha pelos atalhos da Tromba do Elefante, que só os fantasmas conhecem e onde o sol nunca se põe. E chega, no aguaceiro de março, às fábulas da caatinga cinzenta, encardida de poeira, com as pedras de fogo alvejando nossos olhos, mas tão rica, que as almas enterram a riqueza no chão como botijas.
Se Guimarães Rosa atingiu o sertão, atalhou-o metafisicamente; se Graciliano Ramos estilizou-o com a poesia de contenção, estirada de sequidão e despojamento de uma gravura de Goeldi, Calazans, o repórter, desambicioso até, junta poesia, etnografia e genealogia aos primórdios dos cantares sertanejos. Enfim, é um jornalista que nos entrega um mural dos grandes pintores mexicanos.
Esta é a sua arte de contemplar, depois de ter sido pioneiro na educação popular, vindo do povo dos Freijós Copados e se tornando grande na práxis. Na imaginação criadora, no imensurável valor de ensinar, a palavra se faz bailarina nos seus dedos e inquieta sua vida nada mansa de 73 anos.
É por aqui que eu quero encontrar a porta de saída. Assim entendi o “lunário perpétuo” de Calazans Fernandes, o repórter.
(*) Professor, poeta e membro da Academia de Letras do Rio Grande do Norte