MÍDIA & GOVERNO
Luciano Martins Costa (*)
Há uma interessante lição de estoicismo no filme Dogville. Há outra lição de estoicismo na entrevista concedida pelo ministro José Dirceu ao Estado de S.Paulo na quinta-feira, dia 22, e publicada no domingo, 25/1. No filme, a personagem de Nicole Kidman assiste à destruição de seus queridos bonecos de porcelana, um a um, e sabe que, se contiver o choro, poderá salvar os que ainda estão inteiros. Na vida real, o ministro anuncia que vai dar um jeito no Incra, Ibama, Embrapa e Funai, e ainda vai funcionar como um fiscal dos demais ministérios. E haverá de lhe sobrar competência e determinação para levar a bom termo sua cruzada pelo controle da imprensa e do Ministério Público (veja remissão abaixo). Quanto a essa briga, na qual entrou semana passada, durante homenagem de desagravo ao seu colega de partido, o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, ele avisa: “Não acabou ainda”.
Que ninguém duvide. A biografia do ministro autoriza a afirmar que podem lhe faltar razões, mas nunca lhe faltou determinação para perseguir seus objetivos. Quem foi capaz de criar um personagem de fantasia para viver na clandestinidade, e com tal personagem conduzir uma rotina de vida interiorana, casar e constituir família ? e desfazer o cenário para voltar ao teatro político quando lhe foi conveniente e possível ? pode quase tudo. Ou acredita que pode.
Monopólio da clarividência
Do ponto de vista dos negócios públicos, ninguém há de negar o valor de tal personalidade, principalmente quando se constata a necessidade que tem o governo de consolidar a confiança da população e manter a seu favor a balança das forças no Congresso Nacional. A combinação de estoicismo e capacidade de negociação fez de José Dirceu o superministro sobre quem pesam as maiores responsabilidades, entre todos os quadros que cercam o presidente da República. Também é Dirceu, junto com o presidente do partido, José Genoíno, quem interpreta para o Partido dos Trabalhadores o pensamento de Lula.
Mas a mistura das fortes convicções com a capacidade de impô-las a qualquer custo tanto pode fazer do ministro o ponto de equilíbrio entre o purismo partidário e a diversidade de interesses do ambiente político, quanto transformá-lo em embrião de uma ruptura entre o núcleo duro do governo e a realidade objetiva.
Ao pregar publicamente o controle da imprensa ? e não há nota oficial que conserte aquilo que foi dito ?, José Dirceu revela um ranço de autoritarismo. O indivíduo político do tipo que o ministro personifica costuma perder a noção de limite, nos sacrifícios que impõe a si mesmo e a seus circunstantes. A mídia precisa saber ouvir as razões do ministro, mas deve resistir à sua inesgotável disposição para fazer a política acontecer à sua maneira.
No episódio público do conflito com a imprensa, e no recôndito da vida privada que construiu na clandestinidade, o ministro parece ter ignorado que a vida é feita de muito mais do que política. Por mais nobres que sejam seus propósitos. E que o interesse público está tão bem representado nas instituições permanentes quanto, eventualmente, nas composições transitórias dos governos. Estes complementam aquelas, das quais dependem em grande medida para manter sua legitimidade.
Se fosse o estóico José Dirceu, no interior do Paraná, quem defendesse, em público, medidas de controle da imprensa e do Ministério Público, como se representassem a única verdade possível, alguém comentaria que ele havia vestido a capa de Super-Homem. Quando o principal ministro do governo se dá ares de onipotência e onisciência, a imprensa e outras instituições precisam manter os olhos bem abertos.
Na entrevista ao Estado, quando teve todo tempo para refletir, o ministro declarou, literalmente: “Muitos me tomam como excessivamente duro porque falo as verdades”. Talvez esteja aí a origem do conflito. Uma coisa que todo jornalista aprende muito cedo é que a verdade são muitas, e que ainda não foi possível entrevistar um ser humano que tenha tomado conhecimento de todas elas. Tivemos, ao longo da nossa história recente, pelo menos dois homens estóicos que se acreditavam ungidos com o monopólio da clarividência. Um deles renunciou ao mandato em 1961, o outro foi expelido do poder em 1992. O Brasil ainda paga por seus erros.