ARGENTINA
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Jorge Marcelo Burnik (*)
O mérito
Que há uma indubitável crise de representatividade institucional na Argentina já não é novidade, o que, sim, poderia ser considerado um sucesso da mídia é o reconhecimento de deputados e senadores a respeito de um exercício de criação de leis vindas diretamente de fora do país. Mais precisamente na terça-feira passada o senador nacional Jorge Yoma (PJ) reconheceu num programa televisivo (Detrás de las noticias, 8/5/02, América TV) que ele acredita que "no Congresso deveriam avaliar melhor a criação de algumas leis, e não simplesmente aprovar os faxes vindos do FMI", esta afirmação transmitida ao vivo não deveria passar como dado trivial para a população e especialmente para o governo. Como numa corrida desmedida, a mídia toda esta à caça de novas fraturas nas instituições, para ver se há algum tipo de autodepuração ante a iminência de um colapso de conseqüências ainda mais graves que a situação atual.
A experiência vivenciada hoje pelas instituições sociogovernativas, de falta de credibilidade total sobre sua funcionalidade, coloca a população numa encruzilhada bastante intrincada. O povo não acredita na figura dos seus representantes nem nas estruturas sociais tradicionais, também sabe certamente que não terá ajuda de fora; boa parte da população acredita na mídia, mesmo que às vezes viciada por interesses hedonistas. Mas todos sabem que a mídia não pode governar um país, é este melindre que contém precariamente um desmastreamento ainda maior da situação. Com o mesmo efeito que um farol na total escuridão, a mídia percorre todo o país à procura dos transgressores que dilaceraram toda uma nação. Assim, surge uma perversa disputa de pretextos de responsabilidades entre quem devia controlar e acabou agindo como consorte para auferir lucros, e quem sabendo dos desvios e tendo o dever de punir optou por exaurir a essência das leis com readequações disparatadas.
O equilíbrio de poucas nações chegou a situações tão movediças quanto a da Argentina. Aqui, os órgãos de controle institucional totalmente esvaziados de sentido e funcionalidade o foram ? tropologicamente ? pelas sondagens da imprensa, que, inconscientemente ou não, pesquisam, julgam, satanizam ou canonizam segundo critérios desconhecidos pela maioria. A usurpação de atribuições que está acontecendo com a mídia na Argentina é conseqüência de uma situação de "raquitização" dos poderes legitimados no sistema democrático, e a coerente descrença dos membros da sociedade que os deveriam amparar. Seria irresponsável deixar de salientar que a mencionada assunção da mídia a exercícios próprios a outras instituições é de uma periculosidade difícil de prever. Contudo, é o único parapeito que tentou colocar um óbice à descontrolada corrupção do país.
A violência
A ousadia de limitar a ação dos detentores do poder tem um preço para a mídia. Ante a carência de grana para as outrora costumeiras propinas, agora a opção é a resposta violenta dos regedores ante a ameaça dos quesitos da mídia. Assim o experimentou o jornalista Daniel Malnati (programa CQC, canal 13, do grupo Clarín), que foi agredido no exercício da atividade, por ocasião de uma palestra do ex-presidente Menem na província de Tucumán (3/5/02). Malnati foi introduzido à força num elevador, espancado e ameaçado com arma de fogo, fato perpetrado pelos guarda-costas do ex-presidente.
Aliás, é longa a listagem de outros comunicadores que receberam e recebem ameaças de morte para que não desmistifiquem a maneira de fazer política na Argentina. Uma maneira de exercitar um outro tipo de violência, mais solapadora, porém não menos utilizada contra a imprensa, é o uso indiscriminado de litígios na Justiça, também alvo de várias suspeitas de agir condicionada por políticos e sindicalistas. Nem tudo são verdades na mídia, mas a condenação de comunicadores na Justiça argentina já não tem a importância que teria há algumas décadas, e o pior é que a autenticidade destes ajuizamentos concorre escabrosamente com as condenações sociais aventadas pela mesma mídia, e que compõem o verdadeiro imaginário coletivo dos fatos para as pessoas mais simples.
O oportunismo
A cidadania argentina toda está num particular período de alienação; a fragmentação "socioestrutural" ainda está em processo, porém é difícil vaticinar o porvir, até para a mídia é um risco muito grande arriscar prognósticos. Mesmo assim há intenção de divulgar toda tentativa de desvios na procura de uma saída menos pavorosa possível à cada dia mais difícil situação do povo argentino.
Para não sugerir despercebidamente uma coisa por outra, e convindo aceitar que a mídia também é uma instituição, teremos de salientar que, nos últimos anos, os meios de comunicação não melhoraram tanto como poderiam parecer prima facie, mas aconteceu que outras instituições (contemporâneas) tornaram tão precárias suas estruturas e atribuições funcionais, que a mídia acabou ? em relação a estas ? sendo a menos pior; contudo, não pode, ou não deveria, arrogar-se messianismo algum nestes tempos de instabilidade.
Infelizmente, muitos apresentadores ainda não perceberam este diferencial na mídia argentina, especialmente os programas de divertimento tingidos de jornalísticos.
(*) Jornalista graduado na Universidade Nacional de Misiones, Argentina