Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O MST passado a limpo

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

QUESTÃO AGRÁRIA

Cristiane Costa

Em 1997, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra chamou a atenção do país para a questão agrária, realizando uma das maiores manifestações populares de sua história, a Marcha pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça. De lá para cá, a reação da mídia variou do descaso inicial ao deslumbramento, passando por uma demonização sem precedentes (a capa da Veja com um João Pedro Stédile em vermelho, em que só faltavam os chifrinhos, não deixa mentir).

O livro da socióloga paulista Maria da Glória Gohn, ao fazer um apanhado dessa relação de amor e ódio, é um ótimo instrumento para refletir sobre a cobertura da imprensa às ações do MST, além de fornecer importantes informações sobre o movimento, seus pontos altos e seus impasses. Doutora em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado em Sociologia pela New School for Social Research, de Nova Iorque, não faltam à autora credenciais para o trabalho.

Atualmente professora titular da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora do Gemdec (Grupo de Estudo sobre Movimentos Sociais, Educação e Cidadania), Maria da Glória Gohn vem, há mais de 20 anos, dedicando-se a estudar as lutas sociais, com oito livros sobre o assunto.

Tanto para o repórter que cobre os encontros políticos, marchas e invasões, como para o leitor que se interessa pelo assunto, são fundamentais os capítulos que explicam as origens históricas e contexto político do MST. A autora tem a seu favor um discurso não militante, que lhe permite olhar os dois lados da questão, e uma abordagem sociológica bastante contemporânea, que, em vez de abafar as contradições, as explicita.

Assim, ao analisar temas como a importância dada à educação dentro do movimento, vai além dos tradicionais elogios (até do Unicef) ao modelo implantado – em que 2.800 professores atendem a 75 mil crianças nos assentamentos e acampamentos espalhados por todo o país – revelando também os seus impasses. "No projeto educativo do MST há uma visão emancipatória de que o caminho para a libertação é a conscientização", afirma. Mas essa conscientização ideológica esbarraria, segundo ela, na dificuldade de conciliar os problemas reais, principalmente de jovens e mulheres, do dia-a-dia dos acampamentos com a rigidez dos preceitos téoricos marxistas e da herança religiosa do movimento, cujas raízes estão ligadas às Comunidades Eclesiais de Base.

As normas e cartilhas dedicadas à mulher assentada, por exemplo, enfatizam a necessidade de prepará-la para assumir cargos de liderança no MST, mas sintomaticamente deixam de mencionar problemas femininos específicos, como a sexualidade, o controle da natalidade e a divisão do trabalho doméstico. Esse não é um problema menor. Na prática, a precária condição de vida nos acampamentos, a longa espera pela terra, a falta de energia elétrica e de privacidade nas barracas tornam os relacionamentos mais difíceis, especialmente entre os casais, aponta a autora. "O desenraizamento e despertencimento a que estão submetidos os sem-terra corrobora para que as redes de sociabilidade e de solidariedade se enfraqueçam. A violência acaba predominando de uma forma generalizada, como resposta à violência cotidiana a que estão submentidos", diz a autora.

É pena que a propalada relação com a mídia seja relegada a apenas um capítulo do livro. A pesquisadora usa como fontes os jornais Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo, as revistas Veja e Isto É e o noticiário da televisão. Ano a ano, ela faz um levantamento das manchetes dedicadas ao MST e a mudança de enfoque. Segundo esse estudo, com o sucesso da primeira marcha, em 1997, os integrantes do MST deixaram de ser vistos como um "bando
de radicais" para ganhar o status de "trabalhadores em pleno exercício do direito à luta pela democracia e cidadania".

Mas esse namoro com a imprensa durou pouco. "A posição dos principais órgãos da mídia deixou a simpatia dos dias da marcha para o combate sistemático das ações do MST", afirma a autora. "Todos os destaques passaram a ser para os recém-invasores."
No ano seguinte, por causa da conjuntura política, a cobertura à nova marcha dos sem-terra foi completamente diferente da primeira. A imprensa deu destaques às marchas apenas na véspera de 17 de abril (dia do aniversário da morte dos sem-terra de Eldorado de Carajás), quando os manifestantes de 18 estados chegaram a Brasília. Um dos pontos em comum à ccobertura foi a condenação ao "oportunismo do MST", que estaria fazendo das marchas, assim como da bandeira da reforma agrária, uma manifestação política a favor da oposição.
Em 1999, as manchetes foram raras e as críticas ao movimento ainda mais acirradas. Títulos como "O Objetivo do MST é revolucionário" certamente ajudaram a tirar o fantasma vermelho de dentro do caixão. No ano passado, segundo a autora, o debate se burocratizou em torno da divergência entre o governo e o MST em relação aos números da reforma agrária, embora o segundo julgamento do líder José Rainha tenha mobilizado a militância e tido repercussão nacional.
É uma pena que o livro passe tão rapidamente por essas questões. E mais: que preso à imprensa dita séria, tenha deixado de lado casos tão emblemáticos como a exploração feita pela mídia da sem-terra mais famosa do Brasil. De capa da Playboy a personagem da revista Caras, só a história de Débora Rodrigues mereceria um estudo de caso. Assim como a espetacularização da luta pela reforma agrária pela novela Rei do gado, em que o problema dos sem-terra acaba se resolvendo com um casamento entre o fazendeiro e a invasora.

Mesmo assim, é um estudo que vale como subsídio para aqueles que intimamente reconhecem que a autora está certa em sua crítica à imprensa, ao dizer que ela não investe na capacidade analítica de seus profissionais, preferindo premiar os "detetives". E, mesmo sem Esso à vista, tentam compreender o que está por trás dos fatos que estão cobrindo.

(Mídia, Terceiro Setor e MST, Maria da Glória Gohn, Vozes, 182 páginas, R$ 20)

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