Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mundo-cão na telinha

PROGRAMAÇÃO DE TV

Waldo Luís Viana (*)

Imagine como se encontra a deprimida cabeça dos brasileiros, obrigados a assistir àqueles intermináveis programas dominicais com desfile de celebridades de novelas e duplas caipiras e, depois, ter de encarar a segunda-feira, com a prometida ginástica, novo regime alimentar ou ir parar nas filas em busca de emprego, em que se pede inglês fluente e conhecimentos de informática em troca de um salário miserável?

Durante a semana, além do futebol tão emocionante, ter que agüentar sábios apresentadores de auditório e ler as fofocas de jornais e revistas, com a tietagem em torno de atores e atrizes (chamam a isso de "cultura"), que opinam sobre tudo, casamento, aborto, educação de filhos, homossexualismo, ciência e até sobre teatro, influenciando jovens e velhos que não podem ver/ouvir especialistas nesses assuntos, porque eles não possuem a necessária beleza televisiva…

Agora, para homenagear ainda mais as classes C-D-E, a televisão aberta concluiu que os telespectadores, para serem consolados de sua vida miserável, sem dinheiro, emprego e esperança, devem ser submetidos a um verdadeiro espetáculo de violência que lhes permita exclamar, ao verem o mundo cão dos outros: "Tá vendo, até que minha vida não tá tão ruim!"

Essa fórmula surrada, que subsistia durante a ditadura nos antigos jornais populares "que espremiam sangue", agora é transportada para o vídeo, com todo o aparato tecnológico de convencimento. O cansado brasileiro chega do emprego informal, fornido e mal pago, ou da frustração de mais um dia o procurando, e é convidado a assistir à enxurrada de desajustes: estupros, assassinatos e roubos, normalmente cometidos por "elementos" das classes populares, oriundos de lugares de extrema pobreza. Obviamente, crimes muito bem resolvidos pela polícia incorruptível, instaurando-se, assim, aquela simetria facilmente engolida pelos estúpidos e ignorantes: a eterna luta entre mocinhos e bandidos…

Gordos salários

A corrupção dos peixes grandes, o estado venal da República, fica para o horário nobre ou para mais tarde, sustentando-se a audiência através desses programas bombásticos que "fazem escada" para os que virão a seguir. Tudo é remexido no sentido de despertar revolta no telespectador, assombrado com tanta violência, mas sem poder de barganha, porque não há mais censura ou instituições críticas e fortes de mediação entre a opinião pública e a mídia.

A Constituição de 1988 eliminou a censura do regime militar, mas nada colocou em seu lugar, deixando aos poderosos da mídia a liberdade completa de dizer e fazer o que quiserem com os telespectadores. Cometem, inclusive, o crime de chamar indiscriminadamente de "bandidos" pessoas que são apanhadas pela polícia e ainda não foram julgadas. E ainda têm o desplante de afirmar que estão exercendo o politicamente correto. É ocasião de se perguntar: politicamente correto para quem? Quem nomeou essas pessoas para adestrar os cidadãos como perfeitos idiotas e definir o que é ou não é moral ou eticamente permitido?

A atual televisão brasileira, num tempo em que se fala tanto em magreza e boa saúde, tem mantido um time de gordos apresentadores com gordos salários, desagradáveis de ser ver, o que nos faz pensar que os magros vão viver e morrer saudáveis, embora irremediavelmente pobres. Eis aí o terrível paradoxo de sua magreza espiritual.

(*) Escritor e economista; e-mail <waldo@infolink.com.br>; publicado orginalmente na Folha da Praia n? 2191, de 7 a 13 de setembro de 2003