Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O mundo vai melhor quando impera a democracia

IDIOTAS & DEMAGOGOS

Almyr Gajardoni (*)


Prólogo de Idiotas & Demagogos ? Pequeno manual de instruções da democracia, de Almyr Gajardoni, Ateliê Editorial, São Paulo, 2002. Título da redação do OI.


Acompanho a política brasileira desde 1955, ano em que me tornei jornalista e Juscelino Kubitschek foi eleito presidente da República num ambiente assaz perturbado e agitado. Dez anos antes o país saíra de uma longa e tenebrosa ditadura pessoal, e com o sorridente JK nossa incipiente democracia parecia tomar corpo. Não tomou. Mais dez anos e estávamos outra vez sob uma ditadura, desta vez escancaradamente militar ? durante 22 anos os presidentes da República foram marechais e generais, eleitos por um Congresso Nacional que recebia o nome escolhido dentro dos quartéis apenas para referendá-lo protocolarmente.

Escrevi este livro para tratar da democracia, não da ditadura. Nele abuso de sua paciência retrocedendo à Grécia antiga, onde ela começou a ser praticada. Avanço pelo tempo para destacar alguns momentos muito especiais na história do nosso mundo ocidental e cristão em que os ideais de liberdade e participação de todos no governo ganharam impulso. É possível perceber que esses momentos de liberdade e participação coincidem com os períodos em que a cultura, a ciência e a civilização registraram progressos notáveis. Ou coincidem, pelo menos, com o momento em que foram estabelecidas as bases para o desenvolvimento desses períodos de prosperidade, embora o seu desfrute se desse sob o comando de governantes despóticos, ainda que algumas vezes esclarecidos.

Continuo abusando de sua paciência tentando mostrar a trajetória da democracia liberal ao longo da história do Brasil, onde também os momentos de seu apogeu coincidiram com o apogeu da civilização, da cultura, do avanço social e econômico. Basta-me lembrar, como exemplo, os cinco anos de JK ? as metas de um plano administrativo ambicioso executadas quase à perfeição, a indústria automobilística, a bossa nova, o cinema novo, o primeiro campeonato mundial de futebol, Brasília.

Nós éramos muito felizes e não sabíamos ? e assim na sucessão votamos em seu adversário, que prometia devassas, inquéritos e cadeia para os ladrões que, segundo ele, pululavam na administração pública. Pobres de nós. Fomos capazes de acreditar que a administração de um país que se desenvolvia, tornava-se mais culto, inovava na música, no cinema, nas artes plásticas, acelerava o crescimento e a modernização tanto da agricultura quando da indústria, pudesse estar dominada por pessoas desonestas e incompetentes. Esse sucessor ensandecido conseguiu tão-somente plantar as sementes para colhermos, pouco depois, mais uma ditadura.

Tento escrever de forma leve, tanto quanto possível divertida. Tudo muito curto. Quero prender sua atenção. Mas apresento algumas coisas chocantes, outras desagradáveis. Democracia não é uma religião, nem os partidos políticos e as casas onde operam o Executivo, o Legislativo e o Judiciário mosteiros para onde devemos mandar santos e eremitas. A democracia é apenas um sistema de governo que exige ? por favor, atente para o fato de que escrevi exige e não permite ? a participação de todos quantos integram essa imensidão que chamamos povo brasileiro, onde estão o senhor Antônio Ermírio de Morais, com sua fortuna, o senhor Antonio Candido, com sua cultura, e milhões de senhores Antônio Silva com suas pobreza e ignorância.

Não se ofendam os muitos Antônios Silva que vivem por aí. Uso o nome muito comum para registrar a indispensável participação no governo democrático de toda a imensa maioria de gente anônima que integra aquela gigantesca entidade chamada povo brasileiro.

Critico nossa obsessiva preocupação com a eleição do presidente da República, do governador, do prefeito, e o tranqüilo desinteresse, melhor diria indiferença, com que escolhemos o deputado e o vereador. A casa legislativa, e não a casa executiva, é o centro do governo democrático. É onde está o seu representante ? os representantes do rico Antônio Ermírio de Morais, do sábio Antonio Candido e do pobre e ignorante Antônio Silva ? para defender os interesses ? não são privilégios ? dos ricos, dos sábios, dos pobres e dos ignorantes.

São interesses conflitantes, com certeza. Você vai ver no arrazoado histórico que produzi como foi o lento desenvolvimento dessa instituição, o Parlamento, como local onde se conciliam interesses assim conflitantes, pela negociação. É apenas o que se faz na casa legislativa ? negociar e conciliar. O presidente da República, com sua imensa quantidade de votos e o poder de administrar uma fantástica quantidade de dinheiro e de recursos, com certeza causa distorções nesse processo. Mas mesmo com toda essa força, ele é um subordinado da casa legislativa e para governar precisa conquistar o apoio dos partidos que nela formaram poderosas bancadas de representantes do povo. Conquista esse apoio cedendo-lhes parte do seu imenso poder administrativo ? Ministérios, cargos, verbas orçamentárias. Isso não é, como se costuma fazer crer, um pecado do regime democrático ? ao contrário, é sua grande, com certeza sua maior virtude.