JORNALISMO POLICIAL
Muniz Sodré (*)
Ocorreu meses atrás num bairro da Zona Norte do Rio. Dois homens resolveram assaltar uma padaria, próxima a uma casa que serve de balcão de negócios para o tráfico de drogas. De algum modo, a padaria fica sob a "jurisdição" do tráfico, o que torna arriscado o assalto para assaltantes.
Assim foi. Alguém passou o aviso e, em minutos, "soldados" do tráfico cercaram a padaria. Um dos assaltantes morreu em tiroteio no quintal; o outro, perseguido pelas ruas do bairro, foi assassinado a pauladas, à vista de todos.
Tudo isto se passou antes das 10 horas da manhã. Ao meio-dia, chegou a imprensa junto com a polícia, e o fato foi transmitido pela rádio como se estivesse acontecendo naquele exato momento.
O episódio me foi narrado por uma pessoa da comunidade local, e com toques de ironia, destinada a ambos ? polícia e imprensa. Nenhuma amargura, nenhum ressentimento no relato, tão-só deboche.
Diante dos recentes acontecimentos em torno da polícia ? greves nos estados, insatisfação contínua dos agentes, notícias repetidas nos jornais de conduta criminosa de policiais ? e do crescente sentimento de insegurança dos cidadãos no espaço urbano, não é demais levantar a questão sobre a parte que toca a imprensa em tudo isso.
Antes de mais nada, é preciso considerar o fato de que o Estado que acompanha com discursos e ações a marcha triunfal dos modelos econômicos neoliberais é o mesmo que assiste ao empobrecimento das soluções políticas para questões sociais e ao enfraquecimento do monopólio da violência preservadora da ordem jurídico-social. Por isto, tende a negociar implícita e explicitamente com poderes paralelos (o narcotráfico é o grande exemplo), criando um horizonte de crise de soberania com o território nacional.
Num pequeno livro que acabamos de publicar na Argentina e Colômbia (Sociedad, cultura y violência, Editorial Norma ? Enciclopédia LatinoAmericana de Sociocultura y Comunicación), chamamos a atenção para o fato de que, no vazio deixado pela desagregação do sistema político-econômico tradicional e no aparecimento de verdadeiros poderes ilegais, produz-se o fenômeno generalizado da "mafialização" institucional.
A corrupção do aparelho policial e judiciário, a crise dos valores (questão ética) e de fins (questão política) junto a governantes e políticos de um modo geral, o gangsterismo crescente, o descompromisso moral das elites culturais e econômicas ? tudo isto concorre para abalar o modelo clássico de sociabilização e para a desregulação anômica como estado tendencial das massas.
O caso do Rio de Janeiro pode servir de amostra: em 1995, a cúpula da Polícia civil carioca avaliava que apenas 20% de seus membros eram confiáveis, ou seja, dos 12 mil homens em atividade, 9,6 mil ? número maior que o de presos em delegacias ? eram suspeitos. Cinco anos depois, quando aos olhos da sociedade nacional se tornou alarmante o aumento exponencial da violência anômica e do crime organizado, o governo federal e a imprensa chegavam à conclusão de que, no Brasil, pode-se equiparar ao crime organizado, com as vantagens adicionais da proteção legal e dos privilégios corporativos. Dos 300 mil policiais que, em 2000, trabalhavam nos nove maiores estados brasileiros, 30 mil estão acusados de algum crime.
Diante de tudo isso, que se afigura como uma nova modalidade de questão social, seria de se esperar que uma imprensa civicamente comprometido com seu público repensasse as suas velhas fórmulas de mera transmissão de fatos criminais, em favor de um jornalismo mais atento a possíveis mediações de convivência social.
É sabido que, em meio à precariedade da vida associativa presente nas favelas e nas periferias urbanas, a reciprocidade e a solidariedade, características da comunalização, favorecidas por identidades localistas ou por atividades lúdicas, comparecem como importantes mediações sociais. Nenhuma lei se torna efetiva em sua pura abstração jurídica, todo controle legal depende de regras comunitariamente partilhadas por mediações Entender jornalisticamente o que de fato ocorre nas ruas da cidade implica olhar melhor para a comunidade como sujeito do cotidiano.
(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ.