Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O olhar duplo da mídia

CRÍTICA & NEUROSE

Ivo Lucchesi (*)

É tema recorrente em segmentos principalmente acadêmicos certa tendência em satanizar o comportamento da mídia, ora pela sua superficialidade, ora por sua suspeita omissão. Aqui mesmo, em inúmeros artigos, ao lado de tantos outros articulistas, análises têm sido propostas, com base num registro cujo foco procura materializar o estado de vigilância crítica que julgamos necessário para um real e efetivo desempenho da mídia, de modo que ela cumpra o papel de informar o público, permitindo a este a construção de avaliações, capazes de resguardar o princípio da autonomia de pensamento.

No âmbito acadêmico, não faltam publicações nessa direção, a exemplo do recente estudo O olhar do poder: a montagem branca e a violência no espetáculo telejornal, de Maria Izabel Oliveira Szpacenkopf (Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003). Em âmbito internacional, notadamente na vertente francesa, inúmeros são, em artigos ou em ensaios, os escritos de Jean Baudrillard, Pierre Bourdieu, Ignacio Ramonet, Paul Virilio, Edgard Morin. Todos, de uma maneira ou de outra, prestam colaboração para a educação de um olhar atento a manipulações e falsificações. A reiteração desse discurso desconstrutor dos paradigmas congelados não deve ser negligenciada. Afinal de contas, a crítica, com sua presença interventora, preserva e reforça o próprio sentido e prática da democracia.

Força não é poder

O problema em questão reside no fato de saber-se quando efetivamente é exercida a vigilância ou neuroticamente o olhar é traído pelo ímpeto redutor, gerando enfoques igualmente deformantes. Assim, é salutar que, de tempo em tempo, se restabeleça a sensatez que somente o distanciamento pode proporcionar, a fim de conterem-se exageros que, de resto, findam por destinar à ação da mídia valor acima daquele por ela exercido. A mídia é meio. Como tal, promove pontes com as quais, mais por comodidade que necessidade, milhares de pessoas resolvem suas sintonias com o real. Elas decidem que a vinculação com os aparelhos midiáticos deve ser diária ou constante.

A mídia, em nome da facilidade funcional que oferece, se torna força com a qual atrai a atenção dos preguiçosos e indolentes. Estes julgam poderem satisfazer necessidades existenciais e intelectuais com recortes aqui e ali promovidos por pautas diárias. O próprio ritmo da vida moderna conduziu a esse quadro frágil. Guerrilha contra a mídia não passa de reencarnação infantil de Quixote, o que não quer dizer que não se deva empreender rígida e permanente cobrança no tocante a padrões éticos por parte dos setores midiáticos. Todavia, exigir-se da mídia que saia da média é, no mínimo, um paradoxo.

Um rentável exercício para o enquadramento do tema aqui proposto deveria ser testado. Não houvesse a presença permanente da mídia, com todos os seus erros, será que milhares de seres estariam predispostos, por vontade natural, a preocuparem-se com a gravidade de conflitos espalhados por todos os quadrantes do mundo? Sim, é verdade que a mídia banaliza os acontecimentos. Contudo, sem a problematização que, seja em que nível for, a mídia realiza, quantos milhares de seres abdicariam de sua banal vida diária, ainda menos habitada por questões de ordem conjuntural? É preciso lembrar que, por vias naturais, ninguém vai em busca de conhecimento. A natureza humana é arrancada de sua vocacionada prostração pela necessidade de sobrevivência. Afirma-se, pois, que a cultura é uma resposta emergencial do indivíduo contra a morte. Num certo aspecto, sempre pensando no universo de milhares de pessoas, a mídia permite que elas se assustem com a vida, obrigando que os seres saiam de sua condição de limitada e pobre experiência para provocações à altura de lembrar-lhes o valor dramático do que implica viver. Pelo menos, a mídia lhes confere tal possibilidade. Se a maioria extrai o máximo ou o nada é uma decisão individual.

Enfim, a mídia opera, sem redundância, na faixa da mediania. Níveis superiores de percepção e conhecimento têm de ser absorvidos em diferentes fontes e dimensões. Também é bom frisar que tal julgamento se estende aos próprios profissionais e agentes de comunicação. Cumprido o "contrato", o caminho estará aberto para substancial melhoria da população.

(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro