CASO TIM LOPES
Jorge Felix (*)
Quase todos os repórteres que, no início da década de 90, acompanharam pelo menos uma das muitas entrevistas do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em sua campanha contra a fome, presenciaram uma cena heróica. Aqueles dedos longos e magros irem buscar no bolso da camisa o remédio para o coquetel diário e indispensável. O seu principal alimento em sua batalha pela vida de muitos. Betinho misturava tudo num copo d?água com naturalidade. Mas era fácil calcular o tamanho de seu sacrifício para percorrer o país com a calma que sua saúde impunha e com a pressa que exigia a fome. Quando lemos a manchete "Mundo fracassa contra a fome" (Folha de S.Paulo, 9/6/02), lembramos da luta de Betinho e vemos como é perigoso esquecê-la.
É este medo de que um dia possamos esquecer da militância jornalística de Tim Lopes que exige de nós uma continuidade em seu trabalho. Precisamos, mais do que nunca, pensar em Tim como a minha geração um dia pensou: como um exemplo. Quando repórteres jovens desembarcavam em qualquer redação onde ele, disfarçado, informado, decidido desempenhava seu trabalho, a primeira coisa que vinha à cabeça era o sonho de um dia exercer a profissão com os mesmos paradigmas e a favor daqueles mesmos brasileiros que Tim adotava em suas reportagens inesquecíveis. E elas devem continuar honrando este adjetivo.
O nome de Tim tem que estar em todos os lugares onde haja injustiça. Assim como o nome de Betinho deve sempre ser lembrado enquanto o mundo não cumprir a sua triste meta de diminuir em 28,5 milhões, por ano até 2005, o silencioso exército de pessoas que passam fome no planeta. Enquanto tivermos uma Argentina, aqui ao lado, vendo o número de suicídios entres jovens de 10 a 19 anos dobrar em uma década, como ocorreu nos anos 90, por culpa da crise econômica, temos que lembrar das causas defendidas pelo sociólogo Betinho e pelo repórter Tim Lopes.
Essa luta jamais poderá ser vencida se governantes acreditarem que o narcotráfico e o crime organizado são exclusividade de uma cidade já definida tristemente por um governador como "uma avenida na beira da praia". Como se no Rio de Janeiro fosse mais fácil combater a droga do que em qualquer outra cidade do país. Tim nos dizia, há muitos anos, que as causas "disso tudo que esta aí" vão muito aléeacute;m das fronteiras geográficas. Como a fome, esta é uma questão mundial. O mundo deve saber que precisa criar a FAO da droga. No Brasil, precisamos criar ? se possível no âmbito do Ministério da Justiça ? a Comissão Tim Lopes de combate às drogas. É uma sugestão para este e para o próximo governo.
O desafio do jornalismo
A sociedade civil, amplamente representada, com a coragem de Tim, com a perseverança de Betinho, podem dia-a-dia vigiar o trabalho de todas as instituições envolvidas nesta guerra. Uma agência nacional e plural. Com parentes, policiais, juízes, representantes de várias instituições e de todos os estados que cobrariam, mesmo nas condições mais adversas, como fez Betinho, uma solução para este problema, que passa por várias estradas, favelas, clínicas até chegar a ministérios, palácios e bancos centrais.
Um país que, mesmo com um Betinho passando por aqui, perdeu as contas de seus indigentes famintos ? os cálculos vão de 15 a 50 milhões ? não pode, agora, perder as contas de seus dependentes químicos sob pena de, daqui a pouco, perder as contas de seus jornalistas assassinados. Como disse o diretor de operações da FAO, Andrew MacMillan, "nós sabemos muito bem o que fazer, só falta vontade política". A frase vale para a fome e para as drogas. Idem para a declaração de outro diretor da FAO, Jacques Diouf: "Com telecomunicações, transportes, internet, TV é inconcebível que, em algumas partes do mundo, haja pessoas tão ricas, e em outras, pessoas morrendo de fome".
Tim Lopes já sabia disso. Indignado, inconformado, colocava a tecnologia da microcâmera a serviço de quem tinha fomes. Fome de comer. Fome de justiça. Fome de viver decentemente. Fomes que, um dia, aquele menino da Mangueira deve ter passado. O jornalismo tem, hoje, um desafio de afastar o perigo de esquecermos estas mensagens. É preciso repetir, insistentemente, que a fome e a droga são indissociáveis. É por isso que lembrarmos de Tim Lopes é recordar Betinho. Homens com ideais tão grandes que não couberam na pequenez deste mundo. Mas lembremos sempre que, ao menos na poesia, o Brasil é um gigante.
(*) Jornalista, 35 anos