Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O perigo dos percentuais

ESTATÍSTICA, POLÍTICA & MÍDIA

Deonísio da Silva (*)

As cartas não mentem jamais. O mesmo não se pode dizer dos números. Homem de letras, sempre fui um inconformado com a propalada exatidão dos números. Indicadores percentuais, por exemplo, são perigosos e podem levar a grandes enganos.

Caim matou o irmão Abel e com uma única pedrada dizimou uma quarta parte da raça humana. O nosso primeiro e mais emblemático assassino é também, visto de um mirante estatístico, o maior genocida de todos os tempos. De todos os tempos em todos os sentidos, pois inclui também os imemoriais tempos lendários, religiosos e míticos. Gengis Khan, Hitler, Milosevic, qualquer outro genocida jamais alcançará o topo da classificação onde Caim reinará absoluto para todo o sempre. A menos que uma hecatombe (originalmente um sacrifício de cem bois, daí o nome) nuclear nos faça perecer a todos. Mas daí não sobreviverá nem o genocida, que terá se imolado junto com suas vítimas.

Como teria sido noticiado aquele antigo crime no Paraíso? Imaginemos. Eis algumas das amostras: "Caim já foi recolhido ao presídio Bangu II, de segurança máxima". "Há indícios de que o Comando Vermelho esteja por trás do brutal assassinato de Abel". "Conflito entre pecuária e agricultura termina em massacre no Paraíso". "Caim, já recolhido ao Carandiru, agora é membro do PCC e se filiou ao crime organizado". "Deus promete rever segurança no Éden". "O chefe das milícias celestes, o arcanjo-general Miguel, colocou o cargo à disposição". "Anjo da Guarda de Abel tem seu prêmio de assiduidade suspenso e é convocado a depor".

Terminada a ditadura militar, um das maiores chatices que a redemocratização trouxe foi a exagerada importância que se dá a estatísticas. Apesar de ser evidente na crônica política, é também muito usada nas outras áreas.

Lemos sempre que Roseana Sarney está com não sei quantos pontos percentuais, que Lula detém não sei quantos outros, que se José Serra não ultrapassar aqueles números em que parece estacionado até não sei qual data, o Tasso Jereissati vai voltar. Que Leonel Brizola, Ciro Gomes e Itamar Franco pretendem somar os três percentuais etc. E o leitor eleitor não se vê representado nesses números, que quase sempre revelam surpresas, a ponto de não raro inverterem os resultados, e não apenas diminuírem a diferença.

Começo vendo as coisas por onde estou. Nas últimas eleições municipais, um dos candidatos reinou absoluto durante toda a campanha. Às vésperas da eleição, estava 25 pontos percentuais à frente do terceiro colocado, que era o ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos, que fora candidato a vice-governador de São Paulo na chapa de Marta Suplicy. Para resumir a ópera, o atual prefeito é ele. Venceu por pequena margem, de pouco mais de 100 votos.

Com a inflação, dá-se algo semelhante. Os próprios preços de jornais e revistas às vezes invalidam os índices constantes das reportagens. Quando cheguei a São Carlos, em 1981, tomava um cafezinho e comprava um jornal com uma nota de cinqüenta. Não me perguntem a moeda. Acho que era o cruzeiro. Sobravam 10, que eu dava de gorjeta ao atendente que tinha o capricho de passar o café na hora. Sabemos que ele não passa o café, passa a água. Que, claro, leva o café com ela, deixando, porém, o pó. Hoje, vinte anos depois, o café custa R$ 1, o jornal R$ 1,70. A inflação desses anos incluiu café e jornal nas contas? O condomínio do prédio passou de R$ 45 para R$ 300 em oito anos. Os indicadores inflacionários consideram essencial morar?

Na recente greve das universidades federais, o ministro Paulo Renato Souza perdeu a guerra com os docentes que, aliás, deram poderosa ajuda para afastá-lo da próxima disputa presidencial. Deixando de lado o fato de um ministro que fora reitor de uma de nossas melhores universidades, a Unicamp, e secretário de Estado da mais complexa unidade da federação, recusar-se a receber docentes, ele que foi, é e continua professor, também nos litígios havidos as estatísticas foram manipuladas pelos dois lados. Os professores alegavam estar sem aumento desde 1994. O que é aumento, o que é estatística? Se os dois lados fossem sinceros, o problema teria sido formulado de forma diferente e mais clara. Não queremos transparência? Então, que fossem consultados os contracheques e estabelecida a média salarial, um número bem diferente daqueles apresentados pelos dois lados. Nem ficamos sem aumento desde 1994, nem estávamos ganhando o suficiente para uma vida digna como docentes. E quando o STF mandou pagar nossos salários, outro professor universitário, acumulando o cargo com a presidência da República, declarou que tinha mandado pagar os salários e que com tal gesto magnânimo esperava que voltássemos ao trabalho. Não reconheceu, e a maioria da imprensa endossou o erro, induzindo os leitores a engano, que ele somente fazia isso por decisão irrecorrível do STF!

Em resumo, temos uma grave crise de linguagem, sobretudo de designação, de semântica e de estilo, em nossa imprensa. Os nascedouros dos equívocos costumam ser os lugares onde se alojam nossas autoridades, sobretudo os maiorais, aqueles que têm o poder de impor significados aos leitores. Eles encontram facilidades para tanto, entre outros motivos, porque o Brasil tem seu território coberto integralmente por uma mesma língua. Quer dizer, nem sequer podemos contar com uma variação dialetal ou uma tradução que num órgão regional de nossa imprensa semeasse algumas dúvidas no espírito dos leitores. Aquela que deveria ser a nossa grande vantagem – nós nos entendemos todos numa língua comum – passou a ser o nosso calcanhar de Aquiles.

E os jornais e revistas estão todos semelhantes demais, escrevem da mesma maneira, usam as mesmas estéreis fontes e o resultado de todos eles é o mesmo: os leitores diminuem enquanto a população aumenta e aumentam também os alfabetizados. O exemplo ainda está fresco: nos jornais, nas revistas, nos livros. Ilustro com dois: O Cruzeiro vendia um milhão de exemplares quando éramos 60 milhões de habitantes e nossa taxa de analfabetismo rondava a metade da população. E o escritor e conde papal Afonso Celso de Assis Figueiredo, falecido em 1938, vendeu 300 mil exemplares s de seu livro Porque me ufano de meu país, em 1900. Nem Jorge Amado, o mais lido de nossos autores, chegou a esse número com um único título no curso de setenta anos!

Falamos muito em reformas. O pequeno asteróide brasileiro que ronda a Galáxia Gutenberg não está precisando de uma?

* escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, é Doutor em Letras pela USP. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras.