Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O poder da(s) editoria(s) de cidade(s)

COBERTURA LOCAL

Luiz Egypto

O futuro das cidades, de Júlio Moreno, Editora Senac-SP, 146 pp., São Paulo, 2002

O lançamento deve ter sido adiado, o texto pode ter ido para a gaveta. Isto porque o verso da página de rosto de O futuro das cidades sugere que a edição é de 2001, mas a ficha bibliográfica informa ser este título da série "Ponto Futuro", da Editora Senac, de 2002. Detalhe de somenos num livro conciso e bem informado, que trata das cidades onde todos vivemos com rigor jornalístico e estilo escorreito.

O autor é jornalista e começou na profissão como "repórter de cidade", nos anos 1970, época de seu primeiro entusiasmo pelo estudo dos problemas urbanos. De lá para cá, Júlio Moreno só fez alimentar o interesse pessoal, ampliar o leque de fontes e aprofundar as pesquisas sobre tema. Seu livro é um bom resultado disso. A seguir, sua entrevista:

A mídia brasileira está atenta à cobertura dos problemas urbanos? Não me refiro apenas à cobertura relativa dos fatos, mas ao trabalho jornalístico de prospecção, análise e interpretação das políticas públicas aplicadas às cidades.

Júlio Moreno ? A cobertura dos problemas urbanos, de uma forma geral, tem se restringido aos fatos, ao dia-a-dia. Conforme a gravidade do fato, o problema é aprofundado, no desenrolar da cobertura. Mas é, quase sempre, o agente motivador. Trabalho de prospecção baseado numa pauta própria é raro. Mais ainda quando se trata de uma abordagem macro, mais abrangente, como seria a discussão de uma política nacional para nossas cidades. Ou sobre o impacto do mundo digital no tecido urbano ou, mais prático ainda, sobre o que deveríamos fazer para tornar nossa cidade mais auto-sustentável. Ficam aí essas dicas de pautas?

Três perguntas em uma: por que os jornais em geral destacam repórteres iniciantes para as editorias de cidade? Por pouco-caso ou, numa leitura otimista, por enxergarem ali uma escola para novos jornalistas? Por que as editorias de cidade pautam tantas matérias de comportamento?

J.M. ? Não vejo como necessariamente ruim o fato de a cobertura das editorias de cidade terem grande número de jornalistas recém-formados. E creio que este não é um fato isolado, pois hoje há repórteres iniciantes em quase todas as editorias. É a realidade do mercado. No tempo em que comecei no jornalismo, em São Paulo, nos anos 1970, talvez isso fosse algo mais forte. A reportagem geral ? que abrangia de tudo, inclusive polícia ? era a porta de entrada mais comum para os jornais. Esse "pau para toda obra" servia, sem dúvida, como um aperfeiçoamento para os novatos. Não só testava sua flexibilidade para tratar temas os mais variados ? cada dia algo diferente, com fontes diferentes ? como também lhe dava uma maior visão do mundo. O problema, hoje, talvez seja a falta de "senadores", vamos dizer assim ? aqueles profissionais mais antigos, que apadrinhavam os novatos e lhes serviam de mestres. Eles diminuíram e, ao mesmo tempo, penso terem diminuído o tempo e o espaço de conversas, de "trocas", nas redações. Quanto às matérias de comportamento, elas existem porque existe público para sua leitura. Mas concordo que só elas e a cobertura do dia-a-dia não satisfazem o leitor por completo.

As câmaras de vereadores são as instâncias pelas quais tramitam e são transformados em lei a maioria dos projetos de interesse para a vida dos cidadãos que moram nas cidades. Como avalia o acompanhamento da imprensa sobre as atividades dos legislativos municipais? O leitor/ouvinte/espectador conhece o suficiente sobre o que os vereadores deliberam em seu nome?

J.M. ? Em São Paulo, o Estado de S.Paulo tem feito um trabalho muito bom de acompanhamento dos vereadores, em especial na exposição dos absurdos que ocorrem na Câmara Municipal ? como a recente aprovação do Plano Diretor da cidade, com mudanças sem autores conhecidos, na calada da madrugada. Esse episódio, infelizmente, não é um fato isolado, mas apenas exemplo recente de que as câmaras municipais perdem cada vez mais respeito e não representam, em absoluto, os interesses da cidade. No caso específico de São Paulo, a Câmara parece mais um fórum distrital, "resolvendo" (melhor seria dizer "tratando") de problemas isolados, segmentados, bairristas no sentido mais provinciano da palavra. Não é, em absoluto, como deveria ser, a casa de debates da metrópole, o lugar onde exista uma discussão (e, mais do que isto, uma compreensão) da São Paulo de todos. A Câmara Municipal que eu cobri, nos anos 1970 e 1980, era mais "ligada" na cidade como um todo, apesar das restrições políticas que existiam em razão do AI-5. Os vereadores não tinham, por exemplo, autonomia para mudarem o orçamento feito pelo prefeito nomeado.

Ainda sobre a pergunta anterior: considera que a mídia informou e informa a contento sobre o processo de regulamentação da Lei de Responsabilidade Social (o Estatuto da Cidade, Lei 10.257), aprovada pelo Senado em junho de 2001?

J.M. ? Embora sejamos hoje uma sociedade urbana, o Estatuto ficou dez anos parado no Senado sem que a imprensa disso desse notícia. De uma forma geral, a imprensa só se interessou pelo assunto quando o projeto foi "ressuscitado" por força do debate provocado por entidades de classe e da sociedade civil. E hoje, aprovado o Estatuto, raramente ele é mencionado. Creio que aqui há um erro de comunicação também dos governantes, em especial dos gestores de nossas cidades. O Estatuto tem sido pouco divulgado. É ainda uma peça técnica, de conhecimento restrito aos gabinetes.

Nas questões relativas à vida das cidades ? especialmente das grandes metrópoles, onde estão as sedes dos mais importantes veículos de informação ?, a mídia tem sido capaz de funcionar como a ágora dos antigos gregos? Ou este não é seu papel?

J.M. ? Na época do regime militar, quando cidades como São Paulo passavam por uma transformação urbana marcante, em razão de grandes obras e de grandes pressões migratórias, a imprensa local funcionou de fato como uma "ágora" da metrópole. Não havia quase outro espaço para discussão dos problemas da cidade ? além do que, não havia quase espaço para se discutir outro tipo de problema, uma vez que os assuntos políticos e econômicos estavam sob censura. Mas não creio que hoje, numa sociedade democrática, este deva ser seu papel. No máximo a imprensa deva ser a "plaza mayor", ou seja, a "ágora das ágoras", onde são colocados em exposição, confronto e debate as reivindicações dos diferentes setores da cidade. A imprensa deve ser o espelho da cidade, não a cidade em si.

Seu livro cita o crítico e historiador Thomas Carlyle (1795-1881) que, no calor da revolução urbana e social do século 19, escreveu, em 1831, sobre Londres: "Como os homens são apressados aqui; como são caçados, perseguidos de modo terrível, impelidos a andar a toda a velocidade! Assim, por uma questão de autodefesa, eles não podem parar para olhar uns para os outros". De lá para cá, nas grandes metrópoles, mudou tudo e não mudou nada?

J.M. ? Mudou sim. Mudou sobretudo a escala dos problemas. Pior é que, hoje, isto que o escritor registrou como uma anomalia é banalizado como uma caracteristica a mais da vida na metrópole. Enfim, não só o problema aumentou em dimensão, como a consciência crítica da sociedade a respeito diminuiu.

O gosto e o interesse mórbido da mídia de massa pela violência será capaz de, no limite, comprometer, pela banalização, os padrões desejáveis de urbanidade dos habitantes das cidades?

J.M. ? Não estudei muito a questão, mas a princípo divido com você essas preocupações. Creio que os editores dessas publicações poderiam ajudar muito a sociedade abrindo igualmente espaço para o trabalho daqueles que lutam pela transformação da realidade que eles exploram em suas manchetes principais. Não digo o trabalho dos governantes, mas em especial ? no caso ? o trabalho das organizações não-governamentais, que em muitos casos produzem mais efeito pois agem na raiz conduzido por gente da raiz. Fica a sugestão.

Os bairros periféricos e as favelas muitas vezes centrais (mesmo em cidades médias) são os reflexos urbanos de um processo de crescimento econômico pífio e de desenvolvimento para poucos, cujo motor é a concentração de renda e a exclusão social. Ademais, em algumas metrópoles, aqueles são espaços desprovidos de qualquer presença do Estado, afora a eventual intervenção policial. Nesses bairros e favelas só existe violência, nada mais? Ou essa impressão subsiste porque é só isso que a mídia divulga sobre esses lugares?

J.M. ? De fato, não é todo dia que a mídia tem procurado descobrir se existe algo a mais nesses locais. E, sem dúvida, existe. Ser favelado ou morador da periferia não é crime, mas condição de vida. A exclusão da mídia faz parte do fenômeno da exclusão social. Mas, a propósito, qual candidato à presidência da República foi visto em alguma favela durante a campanha? Está bem, deixemos o presidente e mesmo o governador fora disto: me indique apenas qual candidato a deputado estadual ou federal foi a alguma favela nas últimas semanas. Eu não soube de nenhum.

O que a mídia pode fazer para ajudar as cidades brasileiras a se tornarem mais habitáveis? Nas metrópoles, os investimentos requeridos são imensos e o caixa, nenhum. Estamos criando “cidadãos sem cidade”?

É interessante a expressão "cidadãos sem cidade". Mas creio que esta condição, para muitos, já seria uma utopia. Talvez eu esteja exagerando nas palavras, mas o fato é que é cada vez maior o contingente de habitantes urbanos que não são, sequer, "cidadãos" ? na concepção original do termo, aquela pessoa que pode desfrutar de uma mínima infra-estrutura urbana e, sobretudo, da "civilidade" ao redor. A imprensa pode ajudar mostrando mais isto e cobrando ação das autoridades.

Que dizer a um(a) jovem repórter que acaba de mergulhar no mundo da cidade? O que deve perseguir e do que deve fugir?

J.M. ? Perguntinha difícil. Antes de mais nada, esse jovem não deve se sentir um jornalista de segunda só porque caiu na editoria de cidades. Ao contrário, ele deve se sentir no olho do furacão, como um correspondente de guerra que vai ao front, que todo dia está freqüentando o lugar dos confrontos. Registrar bem isto, estar atento às diferentes visões do confronto, não só à sua visão, é o que ele deve perseguir dia após dia. E fugir das facilidades, fugir da comodidade de ficar apenas com a visão oficial dos fatos ou de ver tudo com o filtro das estatísticas. Os press releases da prefeitura ou de uma entidade civil qualquer são "um" elemento, não o "único" elemento de uma cobertura de cidade. Idem as estatísticas ou as explicações acadêmicas. Para ele, para o repórter da cidade, o que vale é ter acesso a tudo isso, saber buscar e juntar em sua cobertura o que falta. Enfim, simples: basta ser repórter.