COBERTURA DA GUERRA
Antônio Brasil (*)
Ao longo da História, o retorno dos guerreiros após os grandes conflitos foi sempre descrito de diversas formas. Alguns voltam cobertos de glórias. Outros, após derrotas, são desprezados por seus compatriotas. Mas em sua grande maioria, apesar de conseguirem o grande feito de sobreviverem, os guerreiros, ao voltarem para casa, são, simplesmente, ignorados.
Na imprensa moderna, jornalista guerreiro é correspondente de guerra. Uma verdadeira elite de jornalistas que arriscam suas vidas para que possamos sentir, na segurança de nossas casas, como são os horrores de um conflito. Pelo seu trabalho, talvez eles até contribuam para evitarmos outras guerras. No Brasil, temos poucos profissionais especializados nesse tipo de cobertura, principalmente no telejornalismo. Mas algumas semanas atrás, neste Observatório, contamos a história da nossa colega Cristiana Mesquita [veja remissão abaixo]. Aquela que deixou o Brasil, mais uma vez, discretamente, sem lenço e sem documento ? ela não tem diploma de jornalista ? para cobrir uma guerra, contratada por uma das mais importantes agências internacionais de notícias para a televisão, a APTN (Associated Press TV News). Com um currículo profissional invejável de vinte anos na "batalha" ? Cristiana, ainda por cima, é jornalista freelancer ?, apesar de ter tentado muito nunca pôde trabalhar para as empresas jornalísticas brasileiras. Quando lhe perguntam sobre o curso universitário, ela responde com uma certa ironia:
? Fui formada na universidade da vida. Tentei muito obter o registro. Infelizmente não tenho tempo nem dinheiro para fazer um cursinho de jornalismo do tipo ?me engana que a mim me encanta? oferecido pelas fábricas de diplomas. Sei que vários colegas, na mesma situação, fizeram qualquer curso de jornalismo e resolveram o problema. Juro que também tentei. Cheguei a prestar vestibular. Por incrível que pareça, passei e até tentei freqüentar algumas aulas. Mas com tantos anos de estrada, depois de ter visto tantas coisas, não posso mais perder tempo. Em sua maioria, esses cursos não têm nada a acrescentar a velhos profissionais como eu. Nada contra, mas acho que escolhi outros caminhos para fazer jornalismo de verdade.
E o poder da TV? O que tem a ver com a Cristiana e a falta de diploma? Após quase dois meses entre o Paquistão, Tajiquistão, Kazaquistão, Usbezquitão e finalmente após ter sido a primeira jornalista brasileira a entrar no Afeganistão, Cristiana, como de outras vezes, voltou ao Brasil. Mas logo na chegada, junto ao caixa da loja do free shop do aeroporto, sentiu na pele, pela primeira vez, o tão decantado poder da televisão. "Desculpe, mas a senhora não é a tal da Cristiana da Globo que estava aí em algum lugar, numa guerra?" Ainda cansada de tanto trabalho e confusa com tantas horas de vôo, ela responde com ar de sono e surpresa: "É… acho que sou". O relato prossegue numa seqüência de oferta de brindes, fotos com os amigos da loja, muita festa e perguntas curiosas.
Ninguém nega ou discute o poder da televisão. Cristiana Mesquita, apesar de já ter coberto tantas outras guerras durante tantos anos, sempre em situações dificílimas, dessa vez se tornou nossa única voz e imagem diretamente de Cabul, via satélite, para o Jornal Nacional, Bom dia Brasil, Fantástico, Jornal da Globo e tantos outros noticiários da Globo durante os momentos dramáticos e indefinidos do conflito. Ponto para a Globo e para o telejornalismo brasileiro.
Desde os atentados terroristas contra os Estados Unidos, parece que, assim como a mídia em geral, todos os noticiários de televisão passaram a perceber a importância e a necessidade de uma boa cobertura internacional. Segundo pesquisas apresentadas pelo Projeto de Excelência em Jornalismo (PEJ), centro ligado à Universidade Columbia, divulgado em artigo recente da Folha de S.Paulo, apesar de ainda ser cedo para constatarmos uma tendência definitiva, há indicações de que os atentados provocaram mudanças positivas nos telejornais. Houve um aumento significativo do tempo dedicado ao hard news, as notícias importantes sobre os fatos que estão acontecendo. Segundo os estudos do PEJ, essas mudanças "lembram muito mais o jornalismo dos anos 70 do que o modelo consolidado ao longo da década passada". Após duas décadas, o noticiário mais sério só fez perder espaço nos telejornais. No mesmo período, matérias de comportamento cresceram 11,3 pontos e a das celebridades, mais do que triplicou. Mas hoje existe um aumento geral de audiência dos principais telejornais americanos ? chegando a 15% na ABC, 9% na CBS e 7% na NBC. Segunda essa medição da Nielsen, o Ibope americano, são mudanças importantes mas não significam uma modificação definitiva nos telejornais. Caso não aproveitemos a oportunidade, esse pode ser simplesmente mais um efeito temporário.
Num quadro de tantas críticas e enorme pessimismo em relação à televisão em geral ? e principalmente em relação ao segmento de telejornalismo ?, a história da Cristiana e o resultado dessas pesquisas recentes parecem indicar a possibilidade de uma reversão importante numa tendência de muitos anos. Quando jornalista que simplesmente consegue fazer o seu trabalho bem-feito se torna uma celebridade ? Cristiana está com agenda cheia de pedidos de entrevistas para vários jornais, sites e programas de televisão ? parece que nem tudo está perdido. A consolidação dessa tendência não depende somente dos nossos gatekeepers, os editores responsáveis pelos telejornais. Depende sim, de todos nós.
Talvez para se evitar mais surpresas num cenário mundial de violência,
conflitos, terror e muita ignorância, a opção
por um telejornalismo
internacional de qualidade contribua não só para uma
televisão melhor, mas talvez possa significar um mundo mais
bem informado e menos surpreso.
(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de Vídeo da Faculdade Comunicação da UERJ e doutorando em Ciência da Informação pela UFRJ