Ana Lúcia Amaral (*)
O homicídio que vitimou a jornalista Sandra Gomide, cometido pelo então diretor de redação do jornal O Estado de S.Paulo, poderia ser tomado pela imprensa como um momento de reflexão e acerto de rumos.
Alberto Dines, no Última Hora deste Observatório [25/8, veja remissão abaixo], apontou para a necessidade de serem estabelecidas regras básicas nas relações entre os profissionais de um mesmo órgão. Afinal, trabalhando com a informação, não é muito difícil imaginar o que pode acontecer entre profissionais tão proximamente postados, se faltarem parâmetros que contenham os impulsos decorrentes de estados de espírito os mais humanos decorrentes do desprezo, da humilhação, do ciúme, daquele que está tomado pelo sentimento de poder. Sim, poder, pois trabalhar com a informação, com a possibilidade de dar uma versão aos fatos e influir nos rumos da história, pode conferir "poder" àquele(s) que a elaboram.
Pelos cargos ocupados pelo homicida – goste-se ou não é nisto que ele se converteu – teve ele de (con)viver com núcleos de poder. Imprensa e poder são coisas que nunca estiveram separadas. Não precisa ser especialista em psicologia para perceber o que isso pode implicar, que "padrões" de comportamento podem ser estimulados, promovidos, reforçados.
Mas o poder, em certas esferas, se exerce dentro de aparente civilidade, dando-se a impressão de serem todos, os componentes dos núcleos de poder, civilizados, polidos, probos. É a hipocrisia que faz "a vida em sociedade" tolerável. Afinal, o inimigo hoje pode ser o aliado amanhã, pois ninguém espera alcançar o poder para ficar pouco tempo. A História está aí a dar evidências.
E sobre esse sentimento de poder que Janio de Freitas, em sua coluna de 31/8/00 (Folha de S.Paulo, pág. A 5), com agudeza característica, encara o profissional da informação, Pimenta Neves, que se transformou em notícia [veja na rubrica Entre Aspas, nesta rubrica].
Direitos personalíssimos
A reflexão acima sugerida impõe que se desnude o "oficialismo" que leva os profissionais da imprensa se entregarem à subserviência para serem aceitos nas esfera de poder, passando a acreditar que foram investidos de poder também. É a sensação de "importância e onipotência", que leva ao "autoritarismo e arbitrariedade".
Para ilustrar tamanha subserviência ao oficialismo, lembrou Janio de Freitas a série de matérias publicadas no jornal O Estado de S.Paulo, muitas sequer assinadas, para atender ao desejo da Presidência da República – em busca de proteção ao ex-secretário da Presidência Eduardo Jorge – de desqualificar procuradores da República que investigam as ações de pessoa tão próxima do centro do poder. As matéria publicadas no Estadão na edição de 8/8/00 (págs. A3, A4 e A5) dão a impressão que o jornal perdera o eixo, tal o tom arrogante e prepotente. Os leitores foram tomados todos por verdadeiros idiotas, que poderiam acreditar em tudo o que estava escrito. A arrogância, prepotência, onipotência do diretor de redação foram ao jornal ou a arrogância, prepotência, onipotência do jornal que contaminaram o jornalista?
A hipocrisia do discurso, em prol do respeito aos direitos personalíssimos à honra etc. e tal, foi exposta ao virem a público o modo de proceder do diretor de redação do jornal que se posta como vestal da moralidade: recusando-se a aceitar a sua condição de sexagenário – o que a sensação de poder pode fazer! – deu-se o direito de retirar de uma jovem, que não mais serviria à sua vaidade, o seu direito de trabalhar. Não contente, resolveu retirar o seu direito de viver.
E não é que vem à tona, novamente, o mesmo discurso hipócrita em defesa da cidadania do homicida, que tão friamente planejou e executou o seu crime?
Na edição citada da Folha de S.Paulo, à pág. A2, Otavio Frias Filho [veja na rubrica Entre Aspas, nesta rubrica], sem conseguir esconder o desconforto (pois "um dos nossos" pode agir como um criminoso vulgar qualquer, como tantos outros que enchem as páginas policiais dos jornais de última linha), tenta se valer de Dostoiévski – afinal todos tão cultos, tão elegantes … – para um caso que está mais para Nelson Rodrigues. A expressão "linchamento moral" é a manifestação de como certos profissionais da imprensa, os que dirigem as empresas de informação, se julgam: "talentosos, cultos, maduros, situados em posição de responsabilidade". Está parecendo muito penoso admitir que, em tais episódios, a choldra e o andar de cima se igualam. Parece ser difícil aceitar essa simples constatação, talvez por força daquele sentimento de poder a que se referiu Janio de Freitas. Os poderosos não atentam para o fato que o poder os apodrece.
(*) Procuradora regional da República, associada do IEDC
Leia também
Dois tiros das redações – Alberto Dines
Internet versus papel – Luiz Antonio Magalhães
Lições do drama – Victor Gentilli
Imprensa em Questão – texto anterior
Imprensa em Questão – próximo texto