DOSSIÊ GUGU
Laurindo Lalo Leal Filho (*)
[Copyright O Povo, Fortaleza, CE, 28/9/03]
Cenas como as vistas no domingo, 7 de setembro, durante o programa Domingo Legal,
do SBT, só vão ao ar porque no Brasil a televisão é um poder sem controle. Na maioria dos
países com democracias consolidadas secularmente existem regras e mecanismos
claros impondo limites à TV. Aqui ela corre solta, regida por um Código de Radiodifusão de
1962, defasado tecnológica e culturalmente em mais de 40 anos. Quando foi aprovado, a
nossa televisão era em preto-e-branco e a sociedade ainda não havia conhecido a
mini-saia e a pílula anti-concepcional. Quem tem uma lei tão anacrônica, na verdade não
tem lei alguma. É por isso que a televisão faz o quer, chegando mesmo a ser decisiva em
eleições e impedimentos de presidentes da República.
No âmbito dos valores éticos, nós só chegamos a este ponto porque sempre houve
condescendência com aqueles que detêm concessões de canais de TV. Quantas vezes a
sociedade reclamou da baixa qualidade do que via na tela e nada foi feito? Com isso a
programação rolou ladeira abaixo. Durante anos aceitamos como normais as
"pegadinhas" que diariamente violam a dignidade humana na televisão. Ora, o que o Gugu
mostrou no Dia da Pátria nada mais foi do que uma "pegadinha" mais sofisticada. Era
natural e previsível que isso ocorresse, tal a leniência com que o Estado brasileiro trata a
TV. E nada indica que tenhamos chegado ao fundo do poço. Sem regras claras, passado
este momento de indignação, é quase certo que veremos novas barbaridades no ar.
Tentativas ingênuas de auto-regulamentação das emissoras fracassaram. Agora ela volta
a ser lembrada pelo atual governo que parece não conhecer a história do setor. A própria
Abert, a poderosa Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão tem um
código de auto-regulamentação de bom nível, que se colocado em prática resolveria o
problema. Só que ele é letra morta, ignorado em favor da luta pela audiência a qualquer
preço.
O que de bom pode ser tirado dos fatos recentes é a indignação que o Domingo Legal
provocou. A sociedade que já vinha se mobilizando através de ONGs como a Tver e da
campanha "Quem financia a baixaria é contra a cidadania", encontrou mais espaços para
discutir e entender que televisão é uma concessão pública outorgada pelo Estado em seu
nome. Por isso deve ser devidamente controlada por essa mesma sociedade. E quando
se fala em controle, exclui-se qualquer tipo de censura. Essa só existe em estados
ditatoriais, onde fatos ou pessoas são proibidos de aparecer a priori nos meios de
comunicação. Aqui, ou em qualquer democracia que se preze, a liberdade de expressão é
garantida, mas a responsabilidade dela decorrente também é exigida. Os concessionários
podem por no ar o que quiserem, mas caso firam leis e princípios éticos básicos da
sociedade, devem ser punidos.
É o que acontece por exemplo na França, na Alemanha, na Inglaterra e em Portugal, onde
conselhos públicos acompanham os contratos de concessão das emissoras, observando
se aquilo que foi estabelecido no papel está sendo cumprido e, ao mesmo tempo,
recebendo manifestações dos telespectadores sobre a qualidade dos programas. Eles
não proíbem nada, mas exigem de quem opera uma concessão pública responsabilidade
social e respeito aos cidadãos. São conselhos com poder de advertir, multar, suspender e
até cassar concessões de TV. É o que está faltando no Brasil.
(*) Laurindo Lalo Leal Filho, jornalista e sociólogo, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP