OS DIAS SEGUINTES
Luiz Weis (*)
Alguma coisa extraordinária aconteceu nos corações de muitos milhões de brasileiros, mas a mídia, em vez de ouvir os seus batimentos, preferiu ouvir a voz dos "cardiologistas" ? as classes conversadoras, como os ingleses gostam de alfinetar os seus intelectuais.
Está se falando, é claro, das emoções que ajudaram a eleger Luiz Inácio Lula da Silva e daquelas que a sua vitória desatou, mesmo entre uma parcela dos que não votaram nele. E está se falando de como essas emoções foram tratadas.
Expor a alma de um povo no momento em que ele faz história é um desafio colossal para o jornalismo em qualquer tempo e lugar. E seria absurdo querer que a imprensa fizesse um relato cabal ? nas ruas ? destes dias trepidantes.
Mas, salvo engano, nenhum jornal, revista, emissora de rádio ou de TV se esforçou para captar, diretamente, uma amostra que fosse desse "sentimento popular", no sentido literal do termo, que transfigurou, se não a dura realidade do país, a sua atmosfera. Prevaleceu o sociologismo instantâneo.
Decerto Lula e o seu triunfo representam coisas diferentes para pessoas diferentes de lugares e condições sociais diferentes. E se pode apostar que, seja lá o que forem, essas coisas têm a força das grandes paixões coletivas.
Isso parece tão óbvio que não se entende por que não açulou o interesse das redações, a julgar pelo se leu, viu e ouviu, tanto quanto os acontecimentos da primeira semana do presidente eleito.
Cadê Dona Maria?
A imprensa em geral cobriu direito o grande momento desses dias de lançamento do que O Globo de domingo, 3/11, chamaria, com muita graça, a "República da Silva" ? a confraternização entre Fernando Henrique e Lula. A mídia também valorizou devidamente a apoteose que foi o seu ir e vir do Planalto, a sua "primeira posse".
Não escapou ao noticiário, por exemplo, a faixa que dizia: "Seja bem-vindo, meu rei, ao seu palácio". Mas a ninguém aparentemente ocorreu apurar quem (e por quê) acha que Lula é o seu rei.
Uma demonstração ainda mais clara do que aqui se critica está na Folha de S.Paulo, do mesmo domingo. O jornal abriu na capa uma foto de prêmio, de autoria de Antonio Gaudério.
Lê-se na legenda intitulada "São Lula", que remete o leitor à página A13: "Maria Amélia Olivatti, que vê no presidente eleito um enviado de Deus, reza em altar com sua foto; para o sociólogo José de Souza Martins, ele tem ?origens messiânicas?, ligadas à influência da Igreja Católica no operariado".
E o que se encontra na A13? Uma variante da foto e da legenda da capa (pela qual se fica sabendo que Maria Amélia é dona-de-casa), um insert do sociólogo da USP e uma taluda entrevista de 1.460 palavras com ele, que ocupa cerca de 3/4 do espaço útil da página.
O quarto restante é ocupado por declarações sobre o messianismo ou antimessianismo de Lula de um punhado de outros acadêmicos (Marilena Chaui, Otávio Velho, Irlys Barreira e Denis Lerrer Rosenfield).
De Dona Maria, a dos retratos, nenhum sinal de vida a mais.
Cadê o morador?
Tome-se agora a revista Época (edição
233, datada de 4/11). Ela acerta na mosca ao justapor na capa um
desenho de Lula e a foto de um mendigo, velho, preto e de barba
grisalha como a do próximo presidente, segurando um pãozinho.
A dupla imagem e a chamada ("Um sonho popular ? O país não mudou. Mas há uma nova esperança nas ruas") fazem a ponte entre os dois grandes assuntos da semana (a fama de Lula e a fome do povo, que ele quer reduzir a zero). E abrem o apetite do leitor.
Sobre a fama, lá dentro, falam: o cineasta João Salles, que faz um documentário sobre a campanha do petista; a historiadora Denise Paraná, que escreveu uma biografia dele; o historiador José Murilo de Carvalho, autor, entre outros livros, de A formação das almas; e, de raspão, o ex-favelado Paulo Lins, que escreveu Cidade de Deus.
E as almas esperançosas (ou desejosas, como diria, na mesma edição, o colunista Zuenir Ventura)?
A revista se deu o trabalho de apurar que a maior votação de Lula ? no Estado do Rio de Janeiro, onde obteve o índice recorde de 79% dos votos ? foi na Vila Kennedy (87,7%). E informa: "Com 120 mil habitantes, Vila Kennedy amarga um desemprego de 20%. Há um único posto de saúde e a renda familiar não chega a dois salários mínimos. Seria difícil encontrar um retrato tão puro do país de 52 milhões que entregaram a presidência a Lula".
Mais difícil ? ou para dizer a verdade, impossível ? é encontrar na matéria a fala de um único morador da Vila Kennedy, dizendo por que votou em Lula, o que sente por ele e o que sentiu com a sua vitória.
(*) Jornalista