LEITURAS DA VEJA
Fernando Torres (*)
Há algum tempo era fácil diagnosticar se os veículos de comunicação se perfilavam a favor da cartilha política e econômica esquerdista ou direitista. Tratava-se de uma ideologia cultivada durante anos, alimentada pelas convicções do patronato e eternizada pelo corpo editorial.
Com a institucionalização da democracia e a crise ideológica da esquerda, esse modelo tornou-se inválido para a grande imprensa. É o que denota uma leitura atenta e quantitativa da revista Veja, periódico que ocupa posição de mais vendido no Brasil há anos. Ela equilibra-se notoriamente entre o cego conservadorismo da direita e as utopias da esquerda.
A essa raia central convencionou-se chamar de liberalismo, uma ideologia cujo princípio remonta ao filósofo inglês John Locke (1632-1704). Os liberais adotam conceitos já difundidos na sociedade pós-moderna. Desprezam a estatização e estimulam a privatização, incentivam a competição e a modernização das empresas, pregam a globalização e a democracia e instigam o consumo a fim de movimentar a economia.
Veja adotou estes princípios em suas análises do primeiro ano de governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Assim, quando este seguia as diretrizes acima, o periódico não poupava elogios. Em contrapartida, quando o presidente "saía dos trilhos", recebia críticas renitentes.
Pode-se ver esta tendência desde os tempos de eleição, com a matéria de capa "O PT está preparado para a Presidência?", de 25/9/02. O periódico destaca a transformação ideológica do então presidenciável e aplaude as promessas de disciplina fiscal e estabilidade econômica.
Isso não quer dizer que Veja apoiou Lula. Na edição anterior ao segundo turno, Veja pôs nas bancas a capa mais polêmica na história da revista ("O que querem os radicais do PT" ? 23/10), com 964 cartas. Além de frases preconceituosas ? como "A quarta maior democracia do mundo terá escolhido para dirigir seu destino um ex-torneiro mecânico" ?, o Especial Eleições 2002 alardeava uma "crise financeira sem precedentes", entre cujos fatores, destaca-se "o temor de um governo Lula".
Mimos e sopapos
Mas, enfim, Lula venceu. E como indica a propícia chamada da primeira edição do ano, "LuLa-de-mel", não faltam as cobranças ? antes mesmo de se encerrarem os cem primeiro dias de governo. Veja também ataca de Caras com a sugestiva seção Brasil/Gente, em que destaca as belas pernas da senadora radical e a excêntrica combinação de terno com tênis de Fidel Castro, entre outras futilidades.
A revista elogia a passagem de Lula pelo Fórum Econômico de Davos, na Suíça. O periódico o aclama como "O elo entre dois mundos", chavão que dá título à reportagem de 29/1. "Lula tem a mostrar ao mundo a armação de um governo que, mesmo sem o declarar, está fazendo funcionar na prática a chamada terceira via, uma utopia criada nos anos 90 com a idéia de colocar metas sociais entre os objetivos pragmáticos do capitalismo de mercado", enaltece.
Veja confirma a ideologia liberal logo após os cem primeiros dias de governo. Matéria interna, apagada pelo fragor da Guerra do Iraque. "Bom desempenho na lua-de-mel" (9/4), estampava o título da reportagem. Mas nem só de afagos se compôs o texto. Ao mesmo tempo em que aplaudiu o desempenho da equipe econômica, o periódico criticou o tumulto dos radicais do PT e o desempenho do programa Fome Zero.
Estes dois itens, aliás, já vinham sendo combatidos por Veja nas edições anteriores. Em 12/2, a revista dedicou toda a seção "Brasil" para falar sobre os radicais. O conteúdo parecia gritar: "Veja avisou", em referência à criticada reportagem anterior às eleições.
Quanto ao Fome Zero, Veja posicionou-se claramente contra a iniciativa. Antes de Lula assumir, a revista já havia criticado ferozmente o projeto em pelo menos duas ocasiões. Em 5/2, a matéria "Fome Zero, confusão dez" reafirma sua ideologia. A reportagem de duas páginas lista apenas críticas ao empreendimento, catalogando-o como "improvisado" e um "equívoco", em contraste ao programas Bolsa-Escola e Bolsa-Alimentação de FHC, que se colocam entre "os mais avançados do mundo".
Discursos e reformas
É notável que Veja "encarnou" nos discursos de Lula. Na já citada edição da posse, encontra-se o oportuno título "Ele falou em mudar 14 vezes". A revista denuncia, mais uma vez, seu temor em mudanças drásticas na política macroeconômica e na austeridade fiscal, mas elogia a contraditória continuidade da era FHC.
Outras (muitas) matérias desse cunho viriam. "Dez anos em pouco meses" (16/4); "Ordem no tribunal" (30/4); "Quase um discurso por dia" (14/5); "Por que os discursos de Lula causam polêmica" (9/7) são algumas delas. Veja contabilizou mais de cem discursos em sete meses. Para ela, a maioria não foi muito feliz.
Em 30/4, a revista criticou o discurso duro e improvisado do presidente contra o Poder Judiciário, pedindo a abertura da caixa-preta. "Lula repercutiu uma espécie de senso comum. (…) O presidente não leva em conta o ritual do respeito mútuo entre os três poderes da República e não tem a mais vaga idéia dos reais problemas da justiça".
O timbre é outro na reportagem de 14/5. "Embora ele [Lula] esteja falando muito, na maior parte das vezes fala certo (…), no tom certo e de uma maneira que o povo entende". Detalhe curioso: ambas são assinadas pelo mesmo jornalista, o editor Alexandre Secco.
Fora esse detalhe dissonante, Veja seguiu coerentemente a linha liberal em relação às reformas. A revista dedicou uma capa para a reforma da Previdência, em 22/1. O título interno, "Começou mal a reforma da Previdência", já atesta sua posição: erguer a bandeira da mudança. "Sem uma reforma drástica no sistema previdenciário, a União terá seu caixa cada vez mais arrombado", enfatiza.
Quando a reforma foi finalmente aprovada, Veja classificou-a como "A grande vitória de Lula", mas lamentou algumas modificações. "O texto da reforma está longe do ideal", alfineta a Carta ao Leitor de 13/8.
E foi só a reforma previdenciária ser aprovada, para a revista batalhar pela reforma tributária. Em 3/9, com o título interno "Para tirar a fera da sala", Veja destacou que a carga de impostos brasileira está entre as mais altas do mundo e que o projeto da reforma não soluciona esse problema.
Lula, o presidente
O periódico saiu de uma leva de capas insossas ao alardear a primeira entrevista em profundidade com o presidente (20/8), com oito páginas. Veja perguntou sobre tudo; Lula respondeu tudo ? a saber, taxa de juros, MST, reformas, economia, hábitos particulares, entre outros itens. Ele fez questão de reafirmar a competência do ministro Antônio Palocci na condução da política econômica, trecho destacado pela revista.
Lula mostrou-se à vontade na entrevista, "Sem medo de ser feliz na cadeira de presidente", como Veja havia manchetado em 4/6. Nesta reportagem, na ocasião da primeira coletiva, a publicação afirma que "o poder está fazendo bem a este homem". Ela molda um Lula às gargalhadas, seguro diante do Congresso e na aprovação das reformas. Carícias propícias.
Talvez a matéria mais acalentadora de Veja tenha sido "O governo Lula disse a que viria. E já faz um ano" (25/6). A reportagem fala a respeito da Carta ao Povo Brasileiro, que completava um ano nesse período. Nela, o PT estabelecia seus planos de gestão política e econômica. Segundo Veja, Lula e seus gurus seguem o mapa à risca. É notório, porém, que a revista aclama seus próprios princípios ideológicos: equilíbrio das contas públicas, controle da inflação, aprovação das reformas.
É preciso citar a posição de Veja em relação à imagem de Lula no exterior. Em "O presidente número 1" (5/11), a revista dá informações a respeito do prestígio de Lula no exterior, que lhe concedeu o título de melhor presidente da América Latina. Mas não se esquece de dizer da queda de sua popularidade no Brasil, de 76,7% para 70,6%.
Tal simetria internacional se deve às viagens que Lula tem feito ao exterior, além, é claro, da condução da política econômica do Ministério da Fazenda. Mas em "O clube dos desfarrapados" (23/7), "Meu caro amigo Fidel" (1.?/10) e "Lula como chanceler… Dirceu como presidente" (19/11), o periódico realça os aspectos negativos dos deslocamentos externos. Contradição.
Lei de mercado
A análise acima priorizou uma pesquisa quantitativa e não qualitativa das reportagens de Veja a respeito do governo Lula. Apenas um exame mais minucioso detectaria pinceladas ideológicas nas entrelinhas. Este, porém, não foi o objetivo deste artigo, que pretendeu mostrar como o periódico se comportou, em linhas gerais, no decorrer de 2003.
Diagnóstico: Veja não é anti-Lula como apregoam muitos críticos de mídia. Isso poderia ser nos tempos de sindicalismo, mas a situação agora é outra. Também não é uma petista incorrigível. Pode-se dizer que se equilibra entre afagos e chutes, mimos e desprezos, carícias e pontapés; tapas e beijos.
Vale lembrar que os meios de comunicação são livres para cultivar os princípios ideológicos que quiserem e fazer as críticas e elogios que bem entenderem, sem serem demonizados por isso. Veja segue um padrão que a consolidou ? um texto repleto de adjetivos, em que mistura informação e opinião.
Na verdade, a maioria das revistas faz isso. Acontece que Veja é a mais visada, conseqüentemente, a mais criticada em termos de parcialidade. O que dizer da revista Carta Capital, que só enxerga os pontos positivos do governo Lula? No contexto da discussão, a impressão é que a Carta é boa porque fala bem de Lula; Veja é ruim porque ousa falar mal.
Todavia, como se viu, Veja não fala pelo presidente ou contra ele: seus gritos de condenação são a favor de si mesma, de seus princípios liberais. Ideologia que, queremos acreditar, ela considera a melhor para o Brasil. Os elogios, por sua vez, não simbolizam tendências socialistas. Não se engane. É a submissão de Lula para com as leis do mercado que tornaram Veja mais, digamos, afável.
(*) Editor-chefe da revista eletrônica Canal da Imprensa (
www.canaldaimprensa.com.br)