VIOLÊNCIA JUVENIL
Walter Falceta Jr. (*)
Como reza Paulinho da Viola, “tá legal, eu aceito o argumento, mas não altere o samba tanto assim…” Mais de uma vez tive de enfrentar meliantes na porrada, um deles na garagem de casa. Entretanto, uma ética resistente mantém o espírito adolescente de porco. Educado pelo destino doloroso, abandonei a arrogância dos “coleguinhas de profissão”, convencidos de saber demais e de ter a “opinião formada sobre tudo”. Como repetia Sócrates, “tudo que sei é que nada sei”. Minha doutrina sustenta-se hoje num tripé: tolerância, bom ceticismo e humildade. Expulsei de mim o carimbador maluco, doido para meter mais uma peça classificatória na carteirinha de Kafka. Já não me parece apropriado aplicar rótulo a coisa alguma. Se não houve o fim da história, pelo menos vivemos o ocaso da taxonomia. Graças a Deus Todo-Poderoso, instaurou-se uma ponta de desconfiança sobre Descartes.
Anacronicamente, entretanto, as mídias sugerem “soluções” prontas para todos os problemas. Fábricas de celulares, inventores de software, clínicas de tratamento de celulite e gurus do management armam suas barracas na feira e vendem “soluções” de baciada. Estarrece, mas é isso mesmo. Seguindo o mote das Organizações Tabajara, “acabaram-se os seus problemas”. Agora, os demiurgos marqueteiros do pragmatismo civil decidiram que são os sweet little 16 os responsáveis pelo cruel arrastão que vitima a praia-brasil.
Quimera a buscar
Analisando antigos escritos jurídicos sumerianos ou atas dos tribunais norte-americanos, percebe-se que a infração é recorrente, que a transgressão insere-se no paradigma, que a turbulência é o padrão da história, especialmente em sociedades injustas e desiguais. Depreende-se que problemas complexos demandam resoluções também complexas. Complexo não quer dizer complicado, mas complexo mesmo, que envolve abordagem transdisciplinar, cruzada, sujeita a inflexões variadas, subordinada a uma certa aposta do caos. Na terra brasilis, na Finlândia ou na Nigéria, a “solução” depende do ambiente, do devir, do conjunto de atitudes encadeadas e imprevisíveis da sociedade.
Isoladamente, decisões no âmbito da segurança e da justiça destinam-se ao resultado X. Caso acompanhadas de crescimento econômico, oferta de empregos e adequado trabalho nas áreas de educação, saúde e assistência social, consubstanciam-se em X+. Não são peças de argumentação, inventadas por ativistas dos direitos humanos. São fatos, comprovados pelas ciências sociais. Privilegia-se comodamente o “aqui e o agora”, a intervenção pontual, posto que a urgência libera o sujeito do compromisso. Sintomaticamente, não são vistas passeatas de mães dos Jardins exigindo escolas para os filhos de suas empregadas da periferia. Até o nobre rabino jogou a toalha. Já prefere a pena capital, a mesma que aplicaram democraticamente sobre Cristo. Na ocasião, o povo eleitor preferiu Barrabás.
Vale recordar A prisão e seus efeitos, de Peter Kropotkin, publicado em 1887, um dos textos anarquistas mais polêmicos de todos os tempos. Ao defender o fim do sistema prisional convencional, da consagrada universidade do banditismo, não creio que o autor se empenhe na apologia do crime ou dos criminosos. Pelo contrário, como homem de idéias, Kropotkin insiste no processo alucinado da contradição, investe na proposta de uma sociedade que se auto-educa permanentemente, destinada à máxima responsabilidade, tão capaz de se monitorar que o indivíduo acaba por prescindir do Estado e dos governantes. Utopia? Sim. Mas não seria um dever de todo cidadão buscar essa quimera, tentar atingir esse estado de plena percepção da realidade e total domínio sobre seus atos?
Robusto negócio
Contudo, essa procura voluntária inclui uma vasta seleção de referências, o que figura do lado de lá, o que é pretérito e o que é futuro. Inclui portanto, uma relação dialética, comprometida e responsável, com as personagens do drama social. Esse “aqui e agora” reivindicado pelas alvas passeatas é, não por acaso, título de um antigo programa vespertino sobre crimes e barbaridades. Quem se lembra? O tal “aqui e agora” indica o primado da emoção, do instinto, da vingança, da ira charlesbronsoniana, da mesma energia barbárica que move o assassino.
A história tem evidenciado que medidas contingenciais servem-se somente à contingência, ao curto momento da crise. Portanto, não é assim, na urgência cega (ainda que compreensível) da classe média ou na demagogia do governador Alckimista, que se fará justiça. Vê-se que “aqui e agora” a hipocrisia ganha corações e mentes, especialmente de muitos jornalistas e articulistas, sensibilizados só agora, quando uma garota branca, rica e bonita perde a vida. Tristíssimo episódio, revoltante. Mas o que estruturalmente as elites nacionais têm feito em prol da própria segurança? Será que erguer cercas eletrificadas basta a quem aspira à felicidade? Liana foi para um sítio abandonado viver seu idílio, longe desse mundo besta de seguranças brucutus e automóveis blindados. Atravessou o fosso, ousou respirar além de sua ilha de prosperidade.
Entretanto, cabe outra indagação: e quanto aos crimes hediondos cometidos contra negros, índios, mestiços e brancos pobres, excluídos e humilhados há 503 anos neste país? De fato, nesse reinado do cinismo, constituem fortunas os delegas canastrões, os mascates de sentenças e, principalmente, os arautos da violência, espertos recicladores da desgraça alheia. Acumulam bens, mercê dos gordos patrocínios para os circos televisivos. Realimentam pela propaganda moralista a máquina trituradora de carnes e almas, glorificando homicídios, transformando fait-divers em dramas burlescamente encenados. Ora, se a sociedade se acalma, sossega, esse robusto negócio definha e fracassa. Impera aqui e agora um fascínio mórbido pelo horror privado, por essa agressividade que sempre existiu, mas que os farsantes vendem como novidade.
(*) Jornalista, 40 anos; trabalhou como repórter da Veja, do Estado de S. Paulo, coordenador de Política e Nacional do Globo, editor da Nova Escola, do site de internet do Estado, diretor da PrimaLettera ? Comunicação e Cultura
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