AVALIAÇÃO DE CURSOS
Zacarias Jaegger Gama (*)
Publicado originalmente na Revista Espaço
Acadêmico n? 32, janeiro de 2004, <www.espacoacademico.com.br
> intertítulos da Redação do OI
Um novo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) estará substituindo o Exame Nacional de Cursos (ENC), popularmente chamado de Provão, já a partir de 2004. É um sistema bem mais completo, composto de quatro instrumentos avaliativos complementares: auto-avaliação institucional, avaliação institucional externa; avaliação das condições de ensino (ACE) e um Processo de Avaliação Integrada do Desenvolvimento Educacional e da Inovação da Área (PAIDEIA), que avalia por meio de provas aplicadas aos alunos, por amostragem, no meio e no final do curso, as principais áreas de conhecimento: ciências humanas, exatas, tecnológicas e biológicas e da saúde.
Tal sistema, entretanto, não é uma novidade em outros contextos latino-americanos onde existem sistemas semelhantes desde fins dos anos noventa. Na Costa Rica, por exemplo, o Sistema Nacional de Credenciamento da Educação Superior (SINACES) avalia e credencia suas IES desde 1998-99. Na Nicarágua e no Panamá, sistemas de âmbito nacional e regional encontram-se em fase de implantação. Onde já existem têm objetivos comuns de estabelecer processos sistemáticos de avaliação das IES, consolidar eficientes e transparentes sistemas nacionais de avaliação, articular o sistema educacional com o sistema produtivo, e cuidar da eficiência e transparência da educação superior.
A instituição do SINAES, mesmo obedecendo à mesma tendência latino-americana ocorre, entretanto, em boa hora e responde às críticas sobre as práticas avaliativas até então vigentes. O Provão, na prática, se valia de instrumentos aplicados a objetos isolados produtores de uma visão parcelada e fragmentada da realidade, deixando de abarcar a riqueza e a complexidade da educação, do sistema de educação e das instituições educativas.
Porém, sem quaisquer ilusões, o SINAES é um sistema autônomo de supervisão estatal que busca integrar dimensões internas e externas, particulares e globais dos diversos objetos e objetivos da avaliação, propondo-se a ser somativo e formativo, quantitativo e qualitativo. Sua função explicitamente regulatória, tende a suprir a ausência do Estado no que diz respeito ao aprimoramento das IES, seus objetivos e funcionamento, e à reorientação do sistema de educação superior de modo a atender as necessidades de uma Nação democrática e soberana.
Ação de formação
Sua vigência implica criar novas regras de entrada, de permanência e de saída do sistema, comprometendo-se a não operar com a ideologia da competitividade, da concorrência e do sucesso individual, admitindo explicitamente estar impregnado pela vontade de ajudar a construir uma concepção de educação superior socialmente comprometida em seus objetivos e funções, oferecendo a garantia de se balizar, em termos conceituais e políticos, por um conjunto de princípios, tais como o de que a educação é um direito social e dever do Estado e que a vida das instituições de educação deve se pautar por valores sociais historicamente determinados. Preceitua, ainda, que a avaliação implica em regulação e controle, e que sua prática social global, legítima, contínua e educativa deve ter respeito à identidade e à diversidade.
Ao contrário do Provão, seu objeto de avaliação está voltado para o trabalho pedagógico e científico, em seu sentido técnico e formativo, e para as atividades mais diretamente vinculadas aos compromissos sociais da instituição. Em sua abrangência procura abarcar "as relações sociais e as condições de trabalho, a eficiência administrativa e a eficácia dos processos interpessoais que se desenvolvem nas distintas instituições" e, da mesma forma, as condições de sustentabilidade e continuidade infra-estrutural, os fluxos de informação, e funcionamentos das câmaras, conselhos, comissões e outros colegiados. Trata, portanto, de avaliar como as IES desenvolvem o ensino, formam, promovem e inserem seus profissionais no mercado de trabalho, integram teoria e prática, e como atendem a demandas sociais imediatas.
No campo de desenvolvimento de uma teoria de avaliação, como outros sistemas similares, corresponde ao que existe de mais atual, sobretudo quanto à relação que estabelece entre os dados da coleta de informações e os tomadores de decisão no âmbito das IES. Sua originalidade é acentuada e vem do status de avaliação baseada no processo com vistas a tomadas de decisão que valoriza os contornos da ação e seus detalhes, admitindo que sua administração é importante para a emissão de juízos de valor. Nesse sentido a avaliação proposta deve ser contínua e comportar inúmeras subavaliações e subdecisões que se encadeiam, se matizam e são coerentes com os propósitos gerais do sistema, e serve ainda para identificar, registrar e julgar os acontecimentos e atividades da ação de formação.
A despeito de sua atualidade, originalidade, importância e complexidade, a avaliação que propõe trata inexoravelmente todos os procedimentos pensados para o sucesso global e se mantém limitada à noção de sistema que acompanha toda a evolução da corrente estruturalista na qual as estruturas e os procedimentos são revelados para que sejam levados em conta. A idéia mais forte do SINAES é a de penetrar no cálculo, na racionalidade dos procedimentos para fundamentar sua eficácia ou sua rentabilidade mesmo correndo o risco de se confundir com as análises de situações, obtenção de indicadores e com instrumentos a serviço do controle social.
Sua aplicação, todavia, não é fácil em função de alguns problemas aparentes. É grande a indefinição dos fins imediatos do SINAES. O compromisso com um projeto de sociedade democrática, com igualdade e justiça social, na prática deixa de transparecer sinais ou vontade de conferir quaisquer direitos ou auxílios matérias às IES avaliadas. O que é transparente é o intuito de desonerar o Estado e transferir os custos e as responsabilidades da avaliação para as IES, inclusive para fins de reconhecimento, cabendo ao Estado tão somente o custeio do Processo de Avaliação Integrada do Desenvolvimento Educacional e da Inovação da Área (PAIDEIA) e da Comissão Nacional de Avaliação (CONAES).
Da mesma forma não está claro se a avaliação pretende levar em conta os desejos e as necessidades particulares das diversas IES ou, simplesmente, ter e trocar informações de boa qualidade. Considerando as funções atuais das instituições de ensino, é imprescindível definir quem deve procurar a melhoria da organização cotidiana e de sua ação de formação. Ademais não está definido o lugar onde se situa a apreciação que caracteriza esta avaliação do processo com vistas à tomada de decisão.
Princípios inegociáveis
Outro problema resulta do pressuposto de que os gestores públicos têm condições de tomar as decisões mais lógicas, objetivas e justas, a partir de instrumentos avaliativos que historicamente tendem mais a proteger e a beneficiar quem avalia É possível, de fato, questionar se eles são mesmo capazes de expressar os melhores juízos e decidir com justiça e imparcialidade? Se eles se sentem cômodos como sujeitos de decisão?
Para além dessas questões, há ainda que considerar o grau subjetividade que impregna a avaliação proposta, assim como a falta de garantias de imparcialidade visto que as diversas comissões externas estão sujeitas a agir com maior ou menor severidade, coerência e arbitrariedade. Apesar de toda generosidade propalada em suas intenções, na prática a avaliação pode ser comprometida frente ao fato de que os avaliandos historicamente não possuem os meios suficientes para fazer prevalecer a justiça e a retidão.
É também problemático o principio de justiça subjacente, o qual permite identificar o valor social e o mérito acadêmico das instituições e de seus programas, assegurando a uma instituição de ensino, pesquisa e extensão ser avaliada unicamente pela função de ensino, ou que se exija de outra que faça pesquisa de ponta. A evidente intenção de distributividade tenta assegurar que a avaliação possa operar indiferentemente com elementos característicos de uma universidade de ponta e de uma faculdade isolada, mas isso de certo modo reduz todas as IES a denominadores comuns visíveis a partir da exibição das suas estruturas voltadas para a ação de formação.
A falta orientações operacionais não iluminam sua aplicação e ainda podem ser agravadas em função da exigência de adesão e confiança das IES nas intenções e nos instrumentos avaliativos. Ora, é complicado esperar que elas se exponham facilmente a juízos externos derivados de interesses e pontos de vistas contraditórios. Do ponto de vista de cada uma o risco mais conspícuo é o de se submeterem à generalização de procedimentos de controle social, com acentuados graus de conformismo e supervalorização dos modelos que servem de referencial para as questões de controle.
Frente a tudo isso o SINAES em seu atual estágio exige acirrado debate nacional no sentido de sua melhor compreensão e operacionalização. Frente às dúvidas e incertezas teóricas e práticas precisa ser mais apurado. Os conceitos de mérito, valor da instituição e perfil institucional, por exemplo, carecem de mais precisão, dada a relevância que adquirem. É importante esclarecer a quem compete financiar as etapas do processo avaliativo e quais os meios de disponibilização de pessoal considerando-se, sobretudo, as dificuldades de recursos financeiros e humanos das instituições públicas. Do mesmo modo, deve-se atentar para a forte estruturação do sistema tendente a centralizar poderes sem a devida representatividade das IES e contrariando expectativas de discussões mais ampliadas, próprias dos regimes colegiados.
A constituição dos grupos de alunos por amostragem, em diferentes momentos de seus percursos acadêmicos para a avaliação anual do Paidéia, é outra questão importante a ser discutida. A tendência predominante no meio acadêmico é a de haver uma avaliação universal envolvendo todos os estudantes de todas as IES.
Por fim vale insistir na manutenção de determinados princípios inegociáveis. O SINAES deve preservar a autonomia das IES; instituir alguns indicadores, por mínimos que sejam, para designar graus ou níveis de qualidade da educação superior realizada ou a ser realizada; garantir processos de avaliação universais, abrangendo todos os estudantes em todos os seus momentos; bem como garantir a diversificação das IES, considerando que cada uma é um lócus produtor de uma cultura particular, dinâmica e dialética.
(*) Professor adjunto do Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino da Faculdade de Educação da UERJ; professor titular do Programa de Pós-graduação do Instituto Superior de Estudos Pedagógicos