ENTREVISTA / FREI BETTO
Frei Betto nasceu escritor e só mais tarde tornou-se frade dominicano. Parece um personagem de Balzac, "um cinqüentão vivido e sociável". É inteligente, culto, simpático e solteiro. Mas não pode casar. Diz, porém, que o celibato, conquanto imposição da Igreja, lhe faz bem, resulta em mais liberdade, mais tempo para escrever.
Frei Betto escritor recebeu prestigiosas distinções pelo mundo afora e também no Brasil. Recentemente foi premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Ninguém estranhou seu nome entre os melhores escritores do ano. É muito conhecido dos leitores por seus livros, constantemente reeditados, e por assídua presença como articulista em vários jornais.
Interlocutor privilegiado de Fidel Castro, personagem-tema de seu livro Fidel e a Religião, circula pelo Vaticano com desenvoltura e está bem informado a respeito das confabulações que já se fazem sobre o futuro papa.
Seu livro mais recente, Hotel Brasil, tem condimentos de romance policial. Nada estranho. E o anterior, Entre todos os homens, apresenta a face profana de Jesus, sem ferir a tradição cristã, mas sem ignorar outras vertentes, como os evangelhos apócrifos, que se ocuparam de um Jesus humano.
Depois de amargar anos de prisão, no recrudescimento da ditatura militar após a promulgação do AI-5, saiu do cárcere com Batismo de Sangue, livro que lhe abriu as portas de muitas outras traduções.
Somente uma crítica literária meio caolha como a que temos pode tratar com tanta displicência um de nossos escritores e intelectuais mais completos.
A seguir sua entrevista ao Observatório da Imprensa.
Um frade dominicano não é frade somente aos domingos. É frade o tempo todo. Ainda mais você que tem, além das atividades inerentes à vida no convento, participação ativa em movimentos sociais, como as comunidades eclesiais de base. Quando é que você escreve?
? Tenho consciência nítida de minha vocação literária. Por isso, reservo 120 dias do ano só para escrever livros. Não são seguidos, mas são cumpridos. Isolo-me, subverto os horários, aproveito para orar e ler, preparo eu mesmo meu alimento. Já sugeri ao Fernando Morais fundarmos um mosteiro literário, onde os escritores possam retirar-se para criar e, nas refeições, ostentar os seus egos…
Tanto em O dia de Angelo ? para mim um de seus melhores livros ? como em Hotel Brasil, seu romance mais recente, temas e problemas sociais aparecem mesclados a momentos líricos, ternos, amorosos, como na relação entre Soror Juana Inés de la Cruz e o personagem Angelo. O que é o amor para você?
? É uma experiência divina. Deus é amor e quem ama conhece a Deus. A frase não é minha, é de são João. Conhecer, para a Bíblia, é experimentar. O amor é uma experiência de sair de si na direção do outro e, ao mesmo tempo, ser capaz de absorver o outro em si. Como canta são João da Cruz, "Ó noite que juntaste / Amado com a amada / amada já no Amado transformada".
Hotel Brasil pode ser lido também como romance policial, apenas, como é o caso de O Nome da Rosa. Foi por estratégia narrativa que você optou por uma trama em que o trabalho de desvendar crimes é essencial à estrutura do livro?
? Sim, eu quis criar uma metáfora de nosso país. Ao mesmo tempo, sempre fui fascinado pelos autores policiais, sobretudo Agatha Christie (já notou que sempre aparece um frade dominicano nas histórias dela?). Mas foi Edgar Allan Poe que me impeliu a tentar um romance policial. Gosto dos contos misteriosos dele. Criar suspense do primeiro ao último capítulo não é nada fácil. Quis enfrentar o desafio. E me sinto feliz com o resultado.
A professora Soeli Maria Schreiber da Silva, da UFSCar, faz essas perguntas: qual a sua opinião sobre o celibato? Não deveria ser opcional? A obrigação de ser casto não fere a liberdade, bem supremo do ser humano?
? Concordo que o celibato deveria ser opcional, como na Igreja primitiva. Jesus escolheu homens casados para apóstolos. Prova disso é que curou a sogra de Pedro. (Não sei se Pedro gostou, mas o fato é que o relato evangélico comprova que Pedro era casado). No meu caso pessoal, nunca tive saudade da família que não formei. Sou um cigano de Deus. O celibato favorece minha condição de liberdade.
Você escreve com uma freqüência extraordinária na imprensa. O jornalismo é caminho auxiliar do escritor? Do frade? Dos dois?
? Comecei jornalista, depois ensaista e, mais tarde, romancista. O fato é que escrever e orar são as duas coisas que mais me trazem felicidade na vida. Tenho muita facilidade para escrever artigos. Hoje colaboro com cerca de 40 jornais e revistas, no Brasil e no exterior. Não nasci frade, mas sei que nasci escritor. Me dou muito bem com os dois.
Por que você tem tal aversão à imagem? Sou testemunha de que você recusou muitas entrevistas à televisão.
? Jamais dou entrevista à TV, nem admito que as minhas palestras sejam captadas em vídeo. O olho canibal das câmaras me agride. Gosto da vida anônima, parar numa esquina com os amigos ou ir a um teatro sem ser reconhecido. Enfim, não invejo ninguém famoso.
Vou fazer a pergunta que não quer calar. O que você tem a ver com Frei Malthus, de Hilda Furacão, do seu conterrâneo Roberto Drummond? A personagem foi, de fato, inspirada em você? Aliás, o título de O Cheiro de Deus nasceu de uma conversa entre você e ele, não foi?
? Sim, o título de Cheiro de Deus surgiu de uma sugestão que dei enquanto conversávamos. Mas nada tenho a ver com Frei Malthus de Hilda Furacão, como também não tenho a ver com o padre Nando de Quarup, de Antonio Callado, ou o Frei Nabor de Guerreiros dos Campo, seu belo romance. Talvez eu tenha sido apenas uma referência na inspiração desses autores.
Você é um daqueles raros intelectuais brasileiros com café no bule. Você tem o que dizer e sabe como fazê-lo. Foi a vida conventual que lhe impôs a disciplina que o leva a ler tanto, a ter essa formação privilegiada?
? A vida conventual ensinou-me a não perder tempo na vida. Leio muito, sou disciplinado para escrever, faço trabalhos pastorais e populares, viajo constantemente. Mas não perco tempo em noitadas, pouco falo ao telefone, não tenho celular, não sei ficar à toa no fim de semana. Como mantenho vínculos permanentes e estreitos com movimentos populares ? MST, CMP, Pastoral Operária etc ? isso me dá bastante matéria para os meus textos. Conheço o Brasil real, o sofrimento dos pobres, a alegria que brota do coração da gente simples.
Você é figura de destaque internacional como frade e como escritor, com livros traduzidos para várias línguas. Freud escreveu que a felicidade é a realização dos desejos infantis. Você é uma pessoa feliz? Você desejou ser frade e escritor quando menino?
? Muito menino desejei ser escritor. Aos oito anos, quando a professora descobriu e elogiu que eu mesmo fazia minhas redações, à época chamadas pelo belo nome de composições. Mas só descobri a vocação religiosa aos 17 anos, tendo assumido-a três anos mais tarde. Sou feliz, muito, pois usufruo de uma boa qualidade de vida, amo e sou amado, jamais me preocupei em dinheiro, sexo ou poder. Nem sacerdote sou. Sou irmão cooperador, embora com a mesma formação de um sacerdote. Minha felicidade deriva do amor que comparto com tantos amigos e amigas, da oração e da criação literária. Tenho o privilégio de não sonhar em fazer mais nada na vida além de fazer melhor o que ora me ocupa.
Quais as grandes mudanças entre o Brasil que o levou à prisão em seus verdes anos e o de hoje, que apresenta seus artigos nos grandes jornais?
? O Brasil redemocratizou-se formalmente, mas ficou muito mais pobre, dependente. Perdeu sua auto-estima e soberania. No entanto, hoje temos uma imensa rede de movimentos sociais atuando em todo o país. E um partido como o PT, que expressa os direitos dos pobres.
Você, por razões óbvias, é um homem muito bem informado sobre a Igreja. Que perfil está se desenhando para o próximo papa?
? Terá de ser um homem ortodoxo na doutrina e aberto à mídia, como João Paulo II. Duvido que seja um progressista como dom Paulo Evaristo Arns, mas também não será um conservador como dom Eugenio Sales. Dom Cláudio Hummes, cardeal de São Paulo, e dom Geraldo Magela, cardeal de Salvador, têm perfis adequados como excelentes candidatos.
Frei Betto escritor já ganhou distinções importantes, como o prêmio APCA, dos Críticos de Arte de São Paulo. Frei Betto romancista deve estar escrevendo um novo romance. Ainda é segredo?
? Estou tentando terminar um relato autobiográfico sobre meus tempos de escola, intitulado Alfabetto ? Autobiografia Escolar. Será editado pela Ática. E tenho na gaveta dois projetos de romances.
Vivemos num mundo de excesso de sociabilidade, não lhe parece? É por isso que você, esteja onde estiver, se recolhe e medita todos os dias?
? Medito quase todos os dias, meia hora pela manhã e meia hora antes de dormir. Por vezes o Espírito de Deus me concede passar o dia meditando em plena zorra de meus trabalhos. É muito bom estar sintonizado com o Pai de Amor.
(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; escreve regularmente nas revistas Época e Caras, e em <www.eptv.com.br>. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras