Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O pulsar de um velho coração

BOCA DO LIXO

Florestan Fernandes Júnior (*)


Prefácio de Contos de Bordel ? A prostituição feminina na Boca Lixo de São Paulo, de Renata Bortoleto, Ana Laura Diniz, Michele Izawa, 160 pp, Carrenho Editorial, São Paulo, 2003; título da redação do OI


Um cruzamento de sonhos e desilusões, de esperança e desespero. No encontro das avenidas Ipiranga e São João fica a artéria principal do velho coração de uma cidade que pulsa no descompasso das contradições.

Foi ali que Caetano se inspirou para criar uma de suas mais lindas canções: Sampa. Foi ali também que nos anos 20 um garoto de cinco anos engraxava sapatos para ajudar em casa. Deslumbrado com os belos cinemas da região, o menino sonhava ter dinheiro para comprar um carrão e levar a mãe para assistir um dos filmes em exibição.

Era sonho. A realidade, dura: ele tinha que disputar todos os dias com outros garotos os clientes apressados. Vez por outra a disputa terminava em tapas e pontapés. Franzino, o garoto encarava os maiores valendo-se de expediente clássico: chutando-lhes a canela. Depois saía correndo entre os pedestres, pegando, literalmente, o bonde andando. Ouvi essa história no colo de meu pai, o engraxate que virou sociólogo.

Hoje, os meninos que circulam pelo centro de São Paulo têm uma vida ainda mais difícil. Abandonados à própria sorte, moram em grupos nas praças da República e Sé. Cheiram cola, fumam crack. São por vezes os trombadinhas das bolsas e carteiras.

A população adulta na região também mudou: hoje são trabalhadores apressados, muitos desempregados e mulheres que se prostituem no mesmo local onde antes as madames ostentavam sua riqueza.

O cruzamento da São João com a Ipiranga perdeu poder, principalmente para a avenida Paulista. Mas ainda sobrou um nostálgico encanto em bares como o Brahma e nos marcos imponentes da cidade, como o viaduto do Chá e o Teatro Municipal.

Em Contos de Bordel, as autoras, Ana Laura, Michele e Renata, me puseram de novo no colo. Contaram-me uma versão atualizada dessa região que tanto marcara a vida de meu pai. As autoras nos relatam histórias e casos das Doras, Rebecas, Janaínas, Elzas, Arletes e tantas outras, e seus clientes sexuais.

Para isso fizeram uma pesquisa de campo minuciosa, que abre ao leitor as portas de hotéis, bares, casas noturnas, teatros e cinemas eróticos. É um mundo de promiscuidade, vícios, violência. Mas também de esperança, solidariedade e amor. Li duas vezes o original, na primeira por fazer parte da banca examinadora do trabalho apresentado na Faculdade Cásper Líbero, e agora para prefaciar o livro.

Nas duas vezes li de um fôlego só. A narrativa é envolvente, aguça no leitor uma curiosidade sem limites, a imaginação voa com a riqueza dos detalhes. O texto é livre e coloquial na forma. Por vezes é chocante, cruento. Como as muitas práticas desse tipo de comércio sexual, pródigo em perversões.

É trabalho jornalístico de primeira, que retrata com precisão as regras para quem vive na bocas do lixo e do luxo. Da prostituta ao cliente, passando pelo laçador (o velho leão de chácara), todos devem cumprir à risca as regras de convivência. O homem que entra numa casa noturna tem que estar preparado para gastar, com a bebida e com o programa, já a mulher faz companhia no copo e no sexo. Beijo na boca nem pensar. A profissional não pode se envolver emocionalmente com o cliente. Quando essa regra é rompida, é o desastre: algumas das entrevistadas exibem marcas profundas no próprio corpo. Uma das autoras viu de perto o facão passando rente à sua pele numa perseguição envolvendo uma prostituta.

Mas nada deteve as autoras, que fizeram do medo um desafio a ser vencido. Contos de Bordel é em sua essência uma grande reportagem, um trabalho primoroso de investigação sobre um mundo que só se explica pela iníqua exclusão social das protagonistas. A maioria ali se vende para viver. Há menores, há grávidas, há mulheres casadas. Estas se prostituem com a anuência do marido. É a lógica terrível da sobrevivência.

No entanto, do sabor acre do livro fica a alegria de saber que, nessa nova geração de jornalistas, existem profissionais com o talento de Ana Laura, Michele e Renata.

(*) Jornalista