RADIODIFUSÃO
Alberto Dines
Para que a afirmação do título não
pareça fruto da leviandade, dilentatismo e niilismo é
preciso antes definir o que há de errado na comunicação
social no Brasil. O problema não está na radiodifusão.
Ou só na radiodifusão.
Estamos nos referindo a um sistema que inclui veículos impressos
e eletrônicos, cada grupo subdividido em subgrupos. Mídia
é plural, não existe no singular. Encarar
ou corrigir apenas uma das suas formas é ignorar o seu caráter
holístico e múltiplo na sociedade de massas. Sobretudo
nesta Era da Informação.
Acrescente-se a velocidade do processo tecnológico e da
criatividade mercadológica e ter-se-á um sistema de
alta complexidade que funciona de forma integrada, sincronizada
e convergente.
Sýstema como queriam os gregos é uma reunião,
grupo, conjunto de elementos materiais ou ideais, entre os quais
se possa encontrar ou definir alguma relação. Disposição
das partes de um todo, coordenados entre si, e que funcionam como
estrutura organizada. Reunião de elementos naturais da mesma
espécie, que constituem um conjunto intimamente relacionado.
Agrupamento de instituições políticas ou sociais,
encarados quer do ponto de vista teórico, quer do de sua
aplicação prática. Quadro das entidades relacionadas
com determinado setor de atividade etc., etc. Conjunto de órgãos
compostos dos mesmos tecidos e que desempenham funções
similares.
Os problemas de um determinado meio de comunicação,
medium, tendem a repetir-se e magnificar-se por intermédio
dos demais porque todos têm a mesma função social
? comunicar.
Tentar resolver isoladamente a radiodifusão,
a chamada mídia eletrônica, significa ignorar o caráter
pluralista e diversificado da comunicação na sociedade
contemporânea, aberta e democrática. Neste aspecto,
digamos morfológico da questão, somos obrigados a
contestar também a precariedade do termo radiodifusão
para designar um conjunto de meios que incluem, além do rádio
e todas as modalidades de TV, também a comunicação
pela internet e seus diferentes desdobramentos que, num futuro muito
próximo, estarão englobando o próprio rádio
e a TV.
Legislar em cima de circunstâncias equivale a produzir regulamentos
condenados à obsolescência.
Ao adotar esta ótica abrangente e sistêmica estamos
principalmente querendo chamar a atenção para as rápidas
mutações produzidas pela tecnologia e para a necessidade
de fixar princípios e doutrinas, estas sim, capazes de estabelecer
um mínimo de continuidade e perenidade diante da velocidade
dos avanços tecnológicos.
Todas as deficiências deste projeto originam-se no seu caráter
particularista e setorial. A saber:
** Esquece a interaç&atilatilde;o
dos diferentes meios de comunicação.
** Esquece outros instrumentos legais
já aprovados ou em vias de serem aprovados na área
da comunicação social e da imprensa criando-se
contradições imperdoáveis num Estado moderno.
** Esquece a concepção
de um Executivo eficaz e regulador que o próprio governo
vem propondo com tanta insistência.
** Esquece a noção de
controle social e participação pública
hoje aceita como essencial para o desenvolvimento da democracia.
Vamos tratar destas quatro omissões logo adiante. Antes
disso vamos identificar os erros, disfunções e desvios
gerais e globais. Primeiro a doença com suas causas e sintomas,
depois o remédio.
Falências da proposta
Os problemas da mídia brasileira resumem-se a dois: o primeiro
refere-se à estrutura e, outro, ao que é produzido
por esta estrutura ? o conteúdo. Todo os demais são
decorrentes.
Em matéria de estrutura nossa mídia
está perigosamente concentrada. Temos um conglomerado
que por várias razões ? todas aparentemente legítimas
? tornou-se hegemônico e, na outra ponta, um número
também muito pequeno de alternativas. Todos, sem exceção,
gigante e anões, sufocados pela descapitalização,
pelo endividamento e alguns até em situação
pré-falimentar. O problema não diz respeito apenas
à questão da concorrência comercial. Diz respeito,
e muito, à pluralidade de fontes informativas.
E esta concentração não se dá apenas
no terreno mais visível, a televisão. Ao contrário,
é agravada pela televisão. E aqui temos o exemplo
mais eloqüente e dramático da nossa concentração
midiática: as principais afiliadas
da Rede Globo do país inteiro são ao mesmo tempo núcleos
dos mais poderosos conglomerados regionais de mídia. Pior
ainda: os mais importantes e influentes jornais
regionais são editados por empresas que entre seus diversos
negócios atuam na TV como afiliadas da Globo. Considerando
que o faturamento de uma afiliada da Globo é no mínimo
dez vezes maior do que a receita de um jornal regional, pode-se
imaginar o grau de dependência desses grupos à matriz
televisiva.
É o caso dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Alagoas, Rio
Grande do Norte, Ceará e Maranhão. Exceções
são Minas, Pernambuco e Brasília cujos principais
jornais são do grupo Diários Associados. Também
a Bahia, onde o mais influente diário é A Tarde,
que pertence a um grupo adversário da afiliada da Globo.
São Paulo, que por enquanto ainda é uma exceção,
dentro de poucos anos tende a enquadrar-se na regra caso o recém-adquirido
Diário de S.Paulo (ex-Diário Popular)
consiga transformar-se num jornal de grande penetração
popular. O que não será difícil considerando
a campanha publicitária para promovê-lo através
da Rede Globo.
O caso de Santos (SP) é o mais aberrante em matéria
de concentração: o maior porto da América do
Sul só tem um diário ? A Tribuna ? e a empresa
que o edita é também afiliada da Globo. Pergunta-se:
o jornal poderá defender alguma causa que ponha em risco
suas relações com a principal fornecedora de seu faturamento?
Fica evidente que qualquer medida que se
adote para diluir a concentração da mídia terá
que levar em conta o sistema midiático como um todo.
Cuidar apenas da concentração na área da chamada
radiodifusão é olhar uma parte do problema. O contrário
acontece nos Estados Unidos, onde a agência reguladora FCC
(Federal Communications Comission) controla a concentração
levando em conta não apenas o universo eletrônico mas
também o seu parentesco com a mídia impressa. Obviamente
este controle não se faz a partir de jornais (que não
sendo concessões podem ser editados livremente) mas, sim,
em função dos conglomerados multimídia gerados
por estes jornais.
Aqui uma das grandes falências da proposta da Lei de Radiodifusão:
além de não ser declarada e suficientemente diluidora
em matéria de mídia eletrônica, não leva
em conta o perigo da imantação de empresas de mídia
eletrônica com mídia impressa e estas com provedores
de conteúdo para a internet.
Características idênticas
É justamente no âmbito desta primeira enfermidade
? ou deformidade ? chamada concentração que se situa
a segunda doença, a baixa qualidade da programação
da nossa TV. Como enfrentar o poder de fogo deste formidável
conglomerado nacional com propostas saneadoras tais como a classificaç&atatilde;o
da programação televisiva por horário e faixa
etária? Ou lançar ao debate a idéia do controle
social de uma concessão pública?
No ano passado assistimos estarrecidos como a ofensiva do Ministério
da Justiça em prol de algo tão simples como a classificação
da programação foi derrotada por este grande conglomerado,
na época ainda mais poderoso e influente porque contava com
a adesão da Folha de S.Paulo, então em bons
termos com o Grupo Globo em função da parceria no
jornal Valor.
Antes que alguém indague a razão da submissão
do poder político ao poder multimídia vale a pena
acrescentar um dado ainda mais grave em matéria de distorção
institucional: todos (repito, todos)
os clãs políticos do país são também
donos ? de forma direta ou indireta ? dos mais importantes grupos
de comunicação regionais. E aqui incluem-se as afiliadas
de outras redes de televisão, como é o caso do ex-senador
Jader Barbalho, afiliado da Rede Bandeirantes.
É preciso dizer que mesmo as oposições temem
mexer num sistema tão bem amarrado e sólido. Seus
projetos de poder não contemplam qualquer alteração
no status quo. Ao contrário, as oposições
contam com a manutenção do status quo em matéria
de mídia para os seus projetos de poder. E se há uma
razão transcendental para criticar este projeto de lei oriundo
do Ministério das Comunicações é o fato
de que, sob o pretexto de remediar e corrigir, ele mantém,
agrava e aprofunda uma situação que relativiza a nossa
democracia e compromete o nosso desenvolvimento cultural.
Foi mencionado antes que o texto submetido ao debate público
cometeu quatro omissões. Da primeira, de caráter didático,
já tratamos ? a impossibilidade de examinar a radiodifusão
desligada do seu contexto sistêmico e multimidiático.
A segunda omissão é operacional: ignora completamente
a existência de outros dispositivos legais em diferentes fases
de tramitação (em todos os casos mais adiantados que
este anteprojeto) e, portanto, em condições de tornar
inócuas algumas de suas proposições.
A saber:
** Já foi aprovada por
uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados a Proposta
de Emenda Constitucional ao artigo 222 da Carta Magna, que regula
a propriedade das empresas jornalísticas e comunicação.
A nova redação, que só espera a oportunidade
para ser votada em plenário, contraria frontalmente o que
está proposto no Capítulo V, Artigo 73, artigos 1?
e 2? desta minuta. Nela está dito que:
(…) a propriedade de empresa de radiodifusão é
privativa de brasileiros natos ou naturalizados há
mais de 10 anos. (…) É vedada a participação
de pessoa jurídica no capital social de empresa de
radiodifusão, exceto a de partidos políticos
e sociedades cujo capital pertença exclusivamente
a brasileiros.
A nova redação do artigo 222 que será apresentada
à Câmara Federal e, depois, ao Senado diz o contrário:
(…) a participação de pessoa jurídica
é limitada a 30% do capital total e votante devendo
os 70% restantes pertencerem exclusivamente a brasileiros
ou brasileiros naturalizados há mais de 10 anos.
E não apenas isso: foi previsto na Constituição
(artigo 224) e já está devidamente regulamentado o
Conselho de Comunicação Social, órgão
auxiliar do Congresso Nacional. Não obstante, a minuta ora
em debate no Livro II, títulos I, II e III propõe
a criação de um segundo órgão de características
idênticas, Conselho Nacional de Comunicação,
ligado à estrutura do Ministério da Comunicação.
E o que faremos com o primeiro Conselho, órgão auxiliar
do Congresso Nacional já regulamentado mas ainda não
constituído?
Controle social
Aqui entramos na terceira omissão do texto submetido ao
debate público: esquece completamente uma das coordenadas
do próprio governo que propõe um Estado mínimo,
com agências reguladoras independentes legitimadas pelo Legislativo
? portanto representativas da sociedade, caso da ANP, Anatel, Anaee
etc. Ao Conselho Nacional de Comunicação caberá
assessorar o ministro das Comunicações que não
tem mandato popular. Já o Conselho de Comunicação
Social é órgão auxiliar do Congresso Nacional,
eleito pelo povo. Não são apenas concepções
conflitantes sob o ponto de vista filosófico, mas opções
políticas incompatíveis e das quais só podem
resultar impasses e paralisia.
A quarta omissão diz respeito ao menosprezo pelo conceito
de controle social do sistema midiático, hoje uma necessidade
considerando sua transformação em poder econômico.
No Capítulo II ("Dos deveres do poder público
e dos direitos dos usuários") estão listados
os objetivos conceituais e os estímulos a serem promovidos
pela nova lei. O inciso VIII sugere que sirva de "estímulo
à auto-regulamentação entre as exploradoras
dos serviços, visando manter elevados os conteúdos
artístico, cultural, ético e moral da programação".
Todos nós sabemos quão frágil são os
mecanismos de auto-regulamentação, especialmente quando
se trata da sobrevivência das corporações. Nos
onze incisos restantes, nenhuma menção à idéia
de promover a participação da sociedade através
de ouvidorías autônomas, ONG?s, conselhos comunitários
etc. Mesmo colocada em termos de sugestão, introduziria na
momentosa discussão sobre o sistema midiático a presença
do Terceiro Setor e, em nossa vida institucional, uma nova maneira
de encarar a cidadania.
Para concluir: esta nova lei nasceu velha. Está superada,
é incompleta e inconsistente. Não serve à sociedade,
não serve ao governo e não serve ao cidadão.
Não serve à radiodifusão e não serve
ao sistema de comunicação social. Serve à burocracia
e à concentração da mídia. É,
sobretudo, deletéria e retrógrada.
(*) O teor deste artigo baseia-se do depoimento do autor à
Comissão de Educação do Senado, subcomissão
de Cinema, Comunicação e Informática, que examina
o anteprojeto da Lei de Radiodifusão, em 31/10/01
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