Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O que há por trás de uma manchete

NÚMEROS DO DESEMPREGO

José Eli da Veiga (*)

Todos sabem muito bem qual é o estrago que pode causar uma campanha de difamação bem orquestrada. Estou sendo alvo de uma iniciativa desse tipo, cuja amplitude ainda &eacuteacute; difícil avaliar. Mas há sério risco de que ela possa manchar uma reputação arduamente construída em 35 anos de luta pela liberdade. Por isso, peço que leiam este relato sobre os acontecimentos. A única coisa que nos deve interessar é a verdade. O resto é resto.

1. O mistério do "Convênio Seade/Dieese"

Uma de minhas primeiras providências ao assumir a Direção Executiva da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados <www.seade.gov.br/>) foi solicitar uma cópia do "Convênio Seade/Dieese", mencionado há quase 20 anos no rodapé de todas as tabelas da "Pesquisa de Emprego e Desemprego" (PED). Nem preciso dizer o quanto fiquei perplexo ao saber que tal convênio simplesmente não existe. E, até agora, ninguém soube me explicar as razões dessa estranha situação. Nem sequer Walter Barelli, com quem me encontrei ontem (22/6) para uma longa e agradável conversa.

A necessidade de saber quais seriam as cláusulas desse misterioso convênio nem precisam ser explicadas. Como diretor-executivo, eu deveria cumprir as regras ali estabelecidas e poderia rediscutir com meus parceiros todo e qualquer costume que não estivesse previsto. Eu tinha uma leve desconfiança de que certas práticas esquisitas não constariam do convênio e poderiam ser revistas. Mas fiquei a ver navios quando me disseram que não existia convênio.

Convidei, então, o diretor-técnico do Dieese, o economista Sergio Mendonça, para uma primeira conversa sobre o relacionamento das duas instituições. Ele concordou que era anômala essa ausência de convênio, e aceitou o prazo de 30 dias (prorrogáveis por mais 15) para nos apresentar uma proposta. Essa reunião ocorreu no dia 28 de março de 2003.

Três semanas depois fui colocado diante do fato de que os resultados da PED referentes ao mês de março deveriam ser divulgados na Fundação Seade. Como um dos principais problemas é a péssima cobertura que a imprensa faz desses resultados, resolvi inovar. Foi acordado, com os repórteres que habitualmente cobrem o assunto, um período de "embargo" das informações, com o objetivo de lhes dar alguns dias para análise do imenso material que lhes é mensalmente distribuído (12 complicadas tabelas, precedidas de páginas de "estatisquês"). Se não estivessem pressionados pela necessidade de redigir suas matérias em apenas algumas horas, o noticiário certamente melhoraria (acreditava eu). E além de lhes dar mais tempo para examinar os resultados, convidei dois colegas especialistas em economia do trabalho para comentarem os resultados durante a coletiva de imprensa: Claudio Dedecca (Cesit ? IE/Unicamp) e Helio Zylberstajn (Fipe ? Fea/Usp).

O resultado dessa iniciativa foi pura frustração. Ao se darem conta de que a interpretação dos resultados é complicada e polêmica, a esmagadora maioria dos repórteres preferiu se restringir à reprodução do release, cujo destaque sempre tem sido o amálgama das três taxas de desemprego previstas na metodologia original elaborada há 20 anos no Dieese: "aberto", "oculto pelo trabalho precário" e "oculto pelo desalento".

Com base nessa constatação, resolvi prestar mais atenção na elaboração do release de maio, que divulgaria os resultados de abril. Depois de muita conversa com os profissionais das gerências envolvidas, redigi um curto release que evitava essa simples adição e procurava chamar a atenção para as diferenças de comportamento dos três tipos de desemprego conceituados pelo Dieese. Depois do release aparecia o texto tradicional e as tabelas.

Foi aí que tive a segunda surpresa. Quando esse release chegou ao conhecimento da diretoria técnica do Dieese, recebi um furioso telefonema do economista Sergio Mendonça no qual ele me repreendia por ter metido o nariz onde não era chamado, além de outras afirmações tão paranóicas que nem vale a pena reproduzir aqui. Eu lhe disse que ele era livre para fazer o que achasse mais apropriado durante a coletiva, que desta feita seria no Dieese por força do costume. E insisti na cobrança da proposta de convênio, lembrando que ele já havia desrespeitado os dois prazos acordados (27 de abril, com prorrogação até 12 de maio). Esta conversa telefônica ocorreu no dia 26 de maio.

O fato de não ter obtido qualquer justificativa plausível para tanto atraso na elaboração de uma proposta de convênio não foi o mais grave. Estarrecedor foi ser informado, depois, de que na coletiva feita no Dieese, seu diretor-técnico havia simplesmente dito aos repórteres: "Vamos pular a primeira página". Ou seja, ele pediu aos jornalistas que ignorassem o release feito pelo diretor-executivo da Fundação Seade. Pior: os jornalistas aceitaram "numa boa". E as manchetes repetidas por todos os canais de rádio e TV e por quase toda a imprensa escrita só diziam uma coisa: 1,9 milhão de desempregados em São Paulo.

2. A denúncia publicada no Valor e a resposta do Dieese

Durante o final de semana (31/05-1/6) reli todas as matérias sobre o desemprego na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e revi o clipping com os noticiários televisivos. Fiquei tão chocado que resolvi abordar o tema em meu artigo quinzenal para o jornal Valor Econômico. Além de mostrar que a RMSP não pode ser considerada representativa da economia paulista, procurei chamar a atenção dos leitores para um fato essencial: a interpretação feita pelo Dieese dos resultados da PED é muito peculiar. Nenhum país do mundo soma as três taxas. Nenhuma instituição pública de pesquisa de outro país soma as três taxas. E posso acrescentar aqui: em seminário internacional sobre o assunto, realizado no Rio no final dos anos 1990, meia dúzia de especialistas de renome mundial reprovaram a soma dessas três taxas. Uma das pessoas que defendia a interpretação do Dieese acabou chorando em público quando percebeu que lhe faltavam argumentos.

Nada mais natural do que receber uma resposta do diretor-técnico do Dieese ao meu agressivo artigo. Mas para refutá-lo seria necessário apresentar argumentos que pusessem em xeque essa tese: de que as três taxas só são somadas pelo Dieese. Nenhuma outra instituição pública de pesquisa ? além do Seade ? se sente obrigado a cometer esse disparate. Todavia, o que apareceu como resposta foi um amontoado de acusações levianas que deram início a uma tentativa de desqualificação do autor do artigo, o diretor-executivo da Fundação Seade. Nessa altura Sergio Mendonça me acusou de "obscurantista".

Chega a ser cômico batalhar para que o público seja bem informado sobre o conteúdo dos três fenômenos sociais que têm sido amalgamados na tão exigida adição das taxas, para depois ser acusado de obscurantismo. Se alguém está querendo obscurecer alguma coisa certamente é quem se nega a explicar à sociedade quais são as diferenças entre o "aberto" e as duas formas de "oculto" ["aberto", "oculto pelo trabalho precário" e "oculto pelo desalento"].

Mas essa inversão retórica e o processo de intenção embutido na resposta do Dieese viraram "café pequeno" quando começaram a surgir as primeiras reações ideológicas da própria mídia.

3. Dois exemplos de imprensa marrom

Enquanto permaneceu nas páginas de Valor, a questão de "somar ou não somar" era uma polêmica que até podia ser benéfica e profícua. O que não dava para perceber é que essa questão, que poderia ser considerada eminentemente "técnica", seria rapidamente subordinada a uma questão maior, e "política": a da obediência da Fundação Seade à orientação ideológica dos atuais dirigentes do Dieese, comandados por um grupo de ex-funcionários do próprio Dieese que foram depois funcionários e dirigentes da Fundação Seade, grupo esse que se acostumou a teleguiar a instituição. Eu não percebera que estava ameaçando esse tipo de interesse que está apegado como uma ostra à Fundação. E foi nesse momento que vi o poder que podem exercer jornalistas irresponsáveis quando são editores de revistas semanais, e até editorialistas de jornais da grande imprensa.

No domingo, 15/6, um amigo me telefonou para saber se eu já havia lido a revista CartaCapital. Como me conhece há muito tempo, não conseguiu acreditar que uma revista dirigida por um jornalista do calibre de Mino Carta aceitasse publicar aquele amontoado de barbaridades. Para quem não leu, vou dar apenas um exemplo:


"Consta que, ao voltar do exílio nos anos 80, Veiga quis trabalhar no Dieese e chegou a pedir emprego a Barelli, mas não pode ser considerado especialista no assunto." [Antonio L.M.C. Costa e Sérgio Lírio, CartaCapital, 18/6/03, pág. 44]


Eu conheci o Walter Barelli como colega no departamento de Economia da PUC-SP, no qual fui admitido por concurso público logo que voltei do exílio. Só o visitei no Dieese uma vez para apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa nacional sobre padrões de consumo alimentar da qual participava como investigador de campo entre os bóias-frias de municípios canavieiros do estado de São Paulo. Na ocasião eu já tinha, portanto, dois empregos. Logo depois passei no primeiro dos cinco concursos de títulos e provas que venci na Universidade de São Paulo (USP) para chegar a professor titular da Faculdade de Economia e Administração. Orgulho-me de ter sempre conseguido emprego por concurso, e de ter sido três vezes emprestado pela USP para os governos estadual e federal. Só precisei pedir emprego para alguém quando estava na clandestinidade. Foi inclusive por seleção pública que quase me tornei gerente de vendas da Ford para o Nordeste, e com nome falso. Isso só não ocorreu porque achei mais prudente ir para o exílio. Enfim, sou uma das poucas pessoas que pode se orgulhar de nunca ter pedido emprego. E se um dia tivesse sido obrigado a faze-lo, como milhões o são todos os dias, certamente não teria sido na porta do então colega de PUC Walter Barelli que eu bateria. Não faltavam naquela ocasião oportunidades bem melhores do que trabalhar no Dieese, onde, aliás, não se entra por concurso público…

Conversei por telefone com o diretor da CartaCapital, Mino Carta, sobre o conteúdo difamatório dessa matéria assinada por um editor e um repórter. Ele ficou de averiguar. Estou esperando o retorno para ver que tipo de providência deverei adotar. E, mal refeito do susto que tomei quando li tais barbaridades na revista de Carta, fui avisado que um editorial da Folha de S.Paulo (16/6/03) me acusava de manipular índices, como havia feito um ministro do governo militar com índices de inflação. Outra vez, apenas um exemplo:


"O novo diretor da Fundação Seade, vinculada à Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo, estaria inclinado a suspender a publicação do índice de desemprego por considerar que se trata de um número cujo cálculo conteria ?exagero?, induzindo a demandas ?populistas?. [Folha de S. Paulo, 16/6/03, editoriais, pág. A-2]


É difícil imaginar que um editorialista possa ser irresponsável a esse ponto. Em nenhum momento alguém cogitou suspender a publicação de qualquer dado. Exatamente o contrário. O que sempre pretendi, e pretendo, é que todos fiquem sabendo quais são os resultados dos índices dos três tipos de desemprego medidos pela Fundação Seade, em vez de serem mistificados por um tipo de interpretação que faz do amálgama desses três índices uma maneira de impedir que o cidadão seja bem informado. O que sempre quis, e quero, é aumentar a transparência.

Pior: mais adiante o editorial afirma que pretendo esconder o índice do desemprego oculto! Ninguém ? nem mesmo os mais raivosos militantes da causa do Dieese ? teria sido capaz de dizer tal barbaridade. Qual teria sido, então, a fonte de quem redigiu tamanha peça de insensatez? Qual seria o interesse de plantar tal intriga num editorial de um jornal da importância que tem hoje a Folha de S.Paulo? Que país é este?

Pois bem, liguei no mesmo dia para o ombudsman, pois se trata exatamente de um caso de flagrante desrespeito ao leitor, e de injúria sobre o diretor-executivo da Fundação Seade, que também é professor titular da USP. Infelizmente o ombudsman foi hospitalizado e ainda não se recuperou. Enquanto aguardo a sua volta, fico sabendo que circula na redação um dossiê sobre o assunto, já que eu havia passado mais de uma hora ao telefone com um repórter do caderno de Economia, que certamente anotou (ou gravou) declarações que só podem mostrar que esse editorial foi simplesmente inventado (ou montado) no 9? andar da sede da Folha sem qualquer consulta ao 4? andar, onde fica a Redação… É surrealismo!

4. Síntese

Não vale a pena alongar, pois imagino que você, leitor, já esteja cansado. A moral da história é uma só: enquanto não existia a internet, ficava difícil responder a esse tipo de vilania. Hoje é diferente. Vou mandar estas linhas para centenas de amigos e colegas. Se quiser me ajudar, faça o mesmo. Com isso, é certo que a mentira não passará!

(*) Professor titular da FEA-USP e diretor-executivo da Fundação Seade