Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O que são as cartas ácidas

"Uma relação delicada nos anos de chumbo", copyright Valor, 27/7/00

"Um Acordo Forçado: o Consentimento da Imprensa à Censura no Brasil, de Anne-Marie Smith, Editora FGV, 264 págs., R$ 29,00

A imprensa brasileira sofreu do complexo de Caim em diversos momentos da história, sobretudo em 1964, quando funcionou como catalisadora para o golpe militar. A polêmica abordagem é de Anne-Marie Smith em ‘Um Acordo Forçado: o Consentimento da Imprensa à Censura no Brasil’, livro que acaba de ser lançado no Brasil.

Segundo a historiadora americana, a grande imprensa foi complacente com a ditadura militar e os jornais alternativos, ainda que denunciassem as torturas, eram de péssima qualidade. De sua crítica implacável não escapa nem mesmo ‘O Pasquim’. Para Anne- Marie, o jornal era ‘sexista e sistematicamente racista que seria de perguntar alternativa a quê’. Mesmo assim, é preciso lembrar que os tablóides sensacionalistas, a ‘imprensa nanica’, com suas fotos macabras e manchetes exageradas cobriam mais das verdadeiras notícias do que os reputados grandes jornais.

Anne-Marie, de 39 anos, Ph.D. em ciência política pelo Massachusetts Institute of Technology, trabalhou em várias organizações não governamentais no Brasil (onde viveu durante dois anos para compor seu estudo).

Valor: Por que a censura à imprensa no Brasil foi tão peculiar?

Anne-Marie: Todo exercício de dominação é único. A meu ver, a particularidade desse regime e o que moldou o modo como ele tratou não só a imprensa, mas outras instituições sociais, foi o seu duplo desejo de controle e de legitimidade. Por um lado, o regime queria manter o controle e estava disposto a exercer a repressão para tal. Com essa finalidade, não só criou um sistema de censura à imprensa como se envolveu em outras ações repressivas – incomodar jornalistas individuais, não lhes conceder credenciais, persegui-los por meio da Lei de Segurança Nacional, cancelar publicidade do governo, fazer auditoria financeira da imprensa, confiscar publicações, etc. Ao mesmo tempo, o regime negava a existência de censura, chamava suas proibições de notícias de meros ‘bilhetinhos’ e recusava-se a colocar uma assinatura de autorização neles. Ele fazia de tudo para negar e insistia na manutenção da liberdade de imprensa. Isso condiz com a maneira particular com que o regime militar tratou outras instituições. O regime aprovou leis que violavam a Constituição, mas nunca aboliu a Constituição; fez expurgos e reduziu muito o poder do Congresso, mas nunca o aboliu; impôs restrições severas à realização de eleições, mas elas continuaram sendo realizadas. É o mesmo padrão particular – peculiar, talvez. O regime era poderoso, mas seu desejo de legitimidade, entre outros fatores, pôs limites ao que ele poderia fazer e moldou as suas práticas.

Valor: Qual seria a diferença entre censura prévia e autocensura?

Anne-Marie: A censura ‘prévia’ ocorria ‘depois’ que um assunto havia sido selecionado, pesquisado e escrito. E a ‘auto’ censura era menos auto-imposta e mais um sistema rigoroso e elaborado de censura policial. Apesar de eu argumentar que a imprensa foi cúmplice e complacente com muito dessa censura, não creio que ela fosse absolutamente auto-imposta.

Valor: A sra. cita a praxe nas redações de assinar formulário acusando o recebimento da proibição. Isso parece ter evitado os enfrentamentos diretos com a autoridade.

Anne-Marie: A assinatura de recibos formais foi um dos muitos aspectos burocráticos da censura. A linguagem das interdições também foi, muitas vezes, formal e oficial, imitando documentos legais. O sistema funcionava de maneira suave e uniforme, dia após dia. E as proibições eram manejadas diretamente por um número muito pequeno de pessoas, em geral. Tudo isso contribuiu para a sensação, expressada por muitos jornalistas, de que eles viveram a censura mais como um aspecto do procedimento operacional padrão do que como um confronto sério com as autoridades repressoras.

Valor: ‘A imprensa brasileira não padeceu de uma cultura do medo’: se não houve resistência, por que tantas mortes e torturas?

Anne-Marie: Embora eu tenha concluído que a criação de uma rotina é uma questão-chave para entender a prática da censura, o medo que a imprensa tinha do governo e o seu apoio a ele também foram relevantes. Havia muitas declarações e ações diferentes a julgar para chegar a essa conclusão. Algumas eram espantosas, como a expressão ‘imprensa papel-carbono’, que era a citação de um militar descrevendo a imprensa no Estado Novo. Houve uma resistência criativa montada pelas poucas publicações submetidas à censura prévia, como ‘O Estado de S. Paulo’, ‘Movimento’ e ‘Opinião’.

Valor: Já houve algum período de autonomia da imprensa?

Anne-Marie: Não, não vejo nenhum período róseo de autonomia da imprensa. A imprensa faz parte das mesmas estruturas de poder que caracterizam os outros aspectos da sociedade. Fala- se da maior democratização da informação que virá via Web, um meio mais difícil de controlar que os jornais. O futuro dirá.

Valor: É quixotesco pensar que a imprensa teve papel decisivo no esgotamento do regime militar?

Anne-Marie: Tudo indica que a paranóia do regime militar é a melhor maneira de explicar isso. Essa não é a única área em que esse regime foi culpado de cometer ‘excessos’. Mas muitos membros da imprensa compartilham a noção de que a imprensa não representou grande ameaça ao regime e sugerem que a censura diz mais sobre a paranóia do regime do que sobre o poder da imprensa.

Valor: Como explicar esta realidade implacável: ignorância dos censores, falta de vontade e criatividade na classe jornalística?

Anne-Marie: O regime tentou conduzir a abertura com cuidado, mas só em parte foi bem-sucedido. Duas forças empurraram a abertura para fora do caminho desejado pelo regime: as disputas internas e a crescente organização e atividade da sociedade civil – da qual a imprensa foi, com certeza, parte importante. Sobre a abertura e a imprensa, considero fascinante que a volta da liberdade de imprensa pudesse tornar-se uma ferramenta de facções do regime. Ao permitir a cobertura das ações e posições dos defensores da ‘linha dura’, Geisel fortaleceu o próprio poder, aumentando a pressão pública quando os recursos de sua facção foram insuficientes para subjugar os adversários de ‘linha dura’ no regime. Quando há divisões no regime, a liberdade de imprensa pode ser um recurso de uma fração contra a outra. A derrocada de regimes repressivos costuma ficar fora de controle."