Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O réu, o julgamento e a hipocrisia

SLOBODAN MILOSEVIC

Cristiana Mesquita (*)

Já na escola percebi que a história é sempre contada pelos vencedores e cresci desconfiando das versões oficiais dos fatos. Talvez tenha sido por isso que me tornei jornalista. Era de se esperar que numa época de comunicação de massa e com uma imprensa mais independente se poderia, finalmente, ouvir os dois lados da história.

No entanto, quando acompanho a cobertura do julgamento de Slobodan Milosevic, ex- presidente da ex-Iugoslávia, em Haia, percebo que pouco mudou.

Em tempo: não estou defendendo Milosevic, mas apenas chamando a atenção para aquilo que chamo de "hipocrisia ocidental". Se não vejamos.

Carla del Ponte, promotora do Tribunal Penal Internacional para crimes de guerra reunido em Haia, na Holanda, fez questão de afirmar que apenas Milosevic estava em julgamento, e não o povo sérvio. Ora, assim como Adolf Hitler, Milosevic foi eleito; portanto, ambos representaram os reais interesses de seus respectivos povos dentro do contexto histórico em que viviam.

Da mesma forma que por interesses econômicos e políticos o Tribunal de Nuremberg eximiu o povo alemão das atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Haia tenta fazer um agrado ao povo sérvio. Se não damos nomes aos bois e continuamos procurando bodes expiatórios para os nossos erros, jamais poderemos aprender com eles.

O povo sérvio, assim como o povo alemão, tem alto nível de educação e informação, e estava inteiramente ciente do que vinha acontecendo na Bósnia e no Kosovo. O mesmo não acontece com os afegãos, que nunca ouviram falar de Osama bin Laden, não sabem onde fica o World Trade Center e estão até hoje sem entender muito bem por que começou a chover bomba sobre suas cabeças. Mas essa é outra historia.

Desde a Segunda Guerra tivemos tempo para estudar e analisar as várias razões que levaram o povo alemão a apoiar o Partido Nazista . Hoje podemos ao menos dizer que isso se explica, mas não se justifica. No caso da Iugoslávia, gosto de fazer a seguinte analogia : imaginem se o grupo étnico hispânico-latino dos estados americanos da Califórnia, Texas e Flórida resolvessem se separar dos Estados Unidos. Estou certa que muitos protestantes anglo-saxões que nasceram e vivem nos mesmo estados não ficariam satisfeitos e, se conheço bem os americanos, começariam a tirar os fuzis automáticos e as metralhadoras que todos guardam no armário e estariam dispostos a lutar para seguir fazendo parte da União. Também acho que Washington não teria dúvidas quanto a que lado apoiar. Em poucas palavras, foi justamente isso que aconteceu na Bósnia. Milícias sérvias armadas pelo governo central da Iugoslávia lutaram para continuar pertencendo à Federação. Explica-se, mas não se justifica…

Comida de cachorro

Entre as principais acusações que pesam sobre Milosevic estão o massacre de Srebrenica e os campos de concentração cujas imagens chocaram o mundo.

Aqui entra a tal "hipocrisia ocidental" e o papel da imprensa que mencionei no início desse artigo.

Comecemos então pelos os campos de concentração. Estive no mais famoso deles , o campo de Maniacia, poucos dias após a divulgação das imagens de prisioneiros esqueléticos serem divulgadas para todo o mundo. Eu estava acompanhando a visita de Simon Rosenthal, militante judeu que se dedicou a perseguir criminosos nazistas e de manter viva a memória do Holocausto. Após a inspeção do campo, perguntei a Rosenthal como ele se sentia ao ver novamente um campo de concentração, e ele respondeu: "Olhe em volta. Isso é um campo de prisioneiros e não um campo de concentração". Mas qual é então a diferença? "É fácil" , disse ele. "Não há trabalho forçado nem uma política e metodologia de extermínio. O que temos aqui são prisioneiros de guerra mantidos em condições precárias, mas não um campo de concentração. Em honra aos seis milhões de judeus exterminados nos campos de concentração devemos ter mais cuidado ao usar este termo."

Obedeci a Rosenthal e olhei em volta. Havia centenas de prisioneiros no campo mas apenas uns dez estavam com aquele aspecto cadavérico que vimos no vídeo e nas fotos.

Será que Slobodan Milosevic e o povo sérvio estão sendo julgados pela escolha de enquadramento da equipe de filmagem? É só examinar com atenção a foto. Os esqueléticos em primeiro plano e os ainda saudáveis, ao fundo.

Meus colegas jornalistas também olharam perplexos em volta mas, como europeus ocidentais, só conseguiam julgar a partir de seus parâmetros e experiências. Já eu, como brasileira, e tendo o desprazer de conhecer alguns dos presídios do Rio de Janeiro e de São Paulo, só pude comentar que aqueles prisioneiros estavam melhor do que os do Carandiru; não comiam "quentinhas" mas pelo menos tinham mais espaço e não tinham virado comida de cachorro. O problema é que "campos de concentração" vendem muito mais jornais do que "campos de prisioneiros". E a história ficou por isso mesmo.

Condenar a guerra

Agora vamos ao massacre de Srebrenica. É uma história que conheço bem. Estive em Srebrenica pela primeira vez em janeiro de 1993. Estava sob cerco sérvio e passando pelo frio e fome inerentes a toda cidade sitiada (vide Stalingrado), mas resistia bravamente. Os oficiais sérvios dificultavam a entrada dos caminhões da ONU com ajuda humanitária e a população das cidades vizinhas jogava pedras e protestava contra a entrega de alimentos ao inimigo. Numa outra ocasião cheguei a cobrir um ataque dos milicianos de Srebrenica à vizinha cidade sérvia de Bratunac, que deixou vários mortos. Coisas da guerra.

No verão de 1994 fui a primeira jornalista a cobrir o êxodo de refugiados logo após a queda de Srebrenica . Milhares de velhos, mulheres e crianças abandonaram a cidade. No rosto de cada um o desespero por ter deixado para trás um filho, um pai ou um marido. O que todos nós já sabíamos foi confirmado no final da guerra, em 1995. A maioria dos homens em idade militar foi morta. Quase três mil corpos foram encontrados em covas coletivas nos arredores da cidade. Terrível? Sem dúvida, mas é importante lembrar que numa guerra civil todo homem em idade militar ? que vai dos 15 aos 50 anos ? é um soldado.

A hipocrisia ocidental está em tentar moralizar uma coisa que é por si só amoral ? a guerra.

Por acaso foi dada a oportunidade de mulheres, velhos e crianças saírem de Hiroshima e Nagasaki antes de se despejar uma bomba atômica na cidade? E o bombardeio covarde a cidade de Dresden, na Alemanha, durante a Segunda Guerra. Mas esse massacres foram cometidos pelos vencedores e jamais serão julgados.

Se me perguntarem, neste caso, se acho que Milosevic deveria sair impune, honestamente não sei. Mas penso que, mais uma vez, estamos tapando o sol com a peneira e perdendo uma grande oportunidade de julgar a nós mesmos e de condenar a guerra.

(*) Jornalista; cobriu a guerra da Bósnia e, mais recentemente, a do Afeganistão