PARANÓIA
Nelson Hoineff (*)
Terça-feira, 11h ? Pelo correio, chega ao meu escritório
um grande saco azul, de material sintético, lacrado. No fundo
do saco pode-se perceber, pelo tato, um objeto relativamente pequeno,
do tamanho de um catálogo de 300, 400 páginas. Preso
ao saco, uma etiqueta com o endereço do destinatário
escrito à mão. Carimbo do local de postagem: Miami.
Remetente: nenhuma indicação.
Terça-feira, 11:30h ? Ninguém no escritório
se atreve a abrir a encomenda. "Alguém pediu alguma
coisa de Miami?". "Não". As duas únicas
empresas com que temos relação comercial em Miami,
quando mandam pacotes o fazem por courier internacional, e têm
sua identificação nos envelopes. Nada parecido com
aquilo. "Quem vai abrir este saco?". Ninguém responde.
"Deixa ali do lado".
Terça-feira, 15h ? "E aquele saco azul? Alguém
abriu?". Silêncio. Temos que fazer alguma coisa. "Liga
pra Fundação Oswaldo Cruz".
Terça-feira, 15:30h ? A Fundação informa que
receberá o material, mas que ele não pode ser enviado
por nós. Só pela Defesa Civil, Corpo de Bombeiros.
"Alguém quer abrir o saco?". "Não!".
"Liga pro Corpo de Bombeiros!".
Terça-feira, 16h ? Desço para tomar um café
na esquina. Um carro do Corpo de Bombeiros passa em frente ao bar
como uma flecha. Estridente, a sirene exige a atenção
dos passantes. O carro pára em frente ao escritório.
Descem seis ou sete bombeiros. Um deles posiciona um cone isolando
o próprio veículo. Tudo leva apenas alguns segundos.
Deixo o café no meio.
Terça-feira, 17h ? Depois de olharem atentamente para o
saco azul, os bombeiros o transferem de um canto da sala para o
lado oposto. Agora estão todos parados, mirando com atenção
a inusitada embalagem. Arrisco: "Talvez nãatilde;o haja razão
para esse estresse. Quem ia mandar pó tóxico para
uma pequenina produtora de televisão no Rio de Janeiro?".
O olhar de todos não se move um centímetro. Ninguém
responde.
Terça-feira, 19h ? Alguém serve um café. A
situação não se altera. Mas está ficando
tarde. Tenho que ir embora. Tento o comandante da operação:
"Não era só para levar o saco à Fiocruz?".
Aprendo que o saco é mais suspeito do que eu pensava. "Pode
conter uma bomba". "Mas já foi manuseado por todo
mundo, levado de um canto a outro. Jogado várias vezes no
chão". Nada feito. O saco não pode sair de onde
está. Os bombeiros não podem levá-lo. Abrir,
nem pensar. Os soldados têm apenas que continuar vigiando.
Até quando? Até a chegada da Divisão Especial.
Mas eu tenho que ir, tenho que fechar a produtora. O auxiliar de
escritório se oferece para ficar com eles.
Terça-feira, 22h ? "Alô, seu Nelson! Os bombeiros
ainda estão aqui. Estão esperando o esquadrão
especial. O esquadrão está no Shopping Carioca, na
Vila da Penha. Ameaça de bomba".
Quarta-feira, 3h ? O esquadrão antibomba chega à
produtora. Atrás dele, uma equipe da Globo, outra da Record.
Vieram juntos da Vila da Penha. O saco azul é removido. O
escritório, lacrado. Ninguém entra.
Quarta-feira, 10h ? Os funcionários da produtora saboreiam
a generosa empada de camarão do Albufeira, o botequim de
onde melhor se avista a portaria. É meio cedo para isso,
mas não há nada a fazer. O escritório permanece
lacrado. No resto do prédio, por onde o saco azul subiu e
desceu, a circulação é livre. "Falei com
a Fiocruz", diz alguém. "São seis exames.
O laudo do primeiro sai em 48 horas. Se for negativo, diz que os
bombeiros liberam". "E enquanto isso?". "Enquanto
isso, nada".
Quinta-feira, 10h ? Albufeira, a mesma empada. "As televisões
tocaram no assunto?". "Não". Nenhum editor
foi tão irresponsável para soltar uma matéria
sobre um saco azul e o nada. Ponto para eles. "Coronel, se
é bomba, já está longe daqui. Se é antraz,
já contaminou quem tinha que contaminar. Por que manter fechadas
as salas?".
Quinta-feira, 16h ? "O primeiro exame não deu nada.
Pode abrir o escritório".
Moral da história: em época de paranóia, a
discrição é uma arma necessária para
estimular a participação das pessoas na defesa pública;
a formação de circos tem para isso um efeito contrário.
O estudo da vitimologia está repleto de ensinamentos neste
sentido. Mas se discrição é arma importante,
não é a principal. Bem acima dela, e permitindo sua
existência, está a informação. Em última
análise, depende exclusivamente da mídia que o cidadão,
em meio à incerteza, saiba não apenas a quem procurar,
mas o que deve fazer ? pesando, sobretudo, o aborrecimento que uma
atitude correta possa lhe trazer.
E a propósito: continuo curiosíssimo para saber o
que havia dentro do saco azul.
(*) Jornalista, diretor e produtor de televisão