TELEJORNALISMO EM CLOSE
Paulo José Cunha (*)
Até eu já me peguei achando que é lenda mesmo aquela história do repórter que fez uma matéria absurda sobre um girassol que cismou de nascer no barro vermelho e duro em frente à garagem da Rede Globo em Brasília… e a Globo botou no ar! Ora, desde quando uma flor no meio de um descampado é notícia? Pior: desde quando girassol que nasce e cresce por aí, de qualquer jeito, feito menino de rua, é notícia na todo-poderosa Rede Globo de Televisão?
De tanto me perguntarem sobre o episódio (ainda na semana passada o editor da Rede TV!, Roberto Borges, mencionava-o durante encontro com estudantes da UnB), vou contar o causo como o causo foi. O tal repórter sou eu. Até onde eu saiba, pelo menos por enquanto, com ajuda de meu médico e algumas vitaminas, venho resistindo a virar lenda. E pode acreditar: na época, o episódio não teve nada demais. Só depois é que a história, passando de boca em boca (ou de boca a ouvido), foi ganhando a dimensão de um certo irrealismo. Como é sabido, quem conta um conto aumenta um ponto. Daí pra virar invencionice de jornalista metido a criativo foi um pulo. Transformou-se em mentira saborosa, boa pra contar em mesa de boteco. Tem gente que acredita nessas coisas.
Na verdade, o episódio teve muito pouco de criativo. Lá no sertão do Piauí o povo diz com sabedoria que o sapo não pula por boniteza, e sim por necessidade. Pois assim deu-se o sucedido. Há dias estava naquela de ir e voltar do Congresso sem conseguir emplacar uma matéria decente. Até aí, nada demais. Acontece com Peter Arnett e Ernesto Paglia. A “trepidante” vida de repórter ? creiam ? é mito puro. No mais das vezes, a gente convive mesmo é com uma enervante rotina quebrada aqui e ali. Se o cabra não capricha no texto, a maioria das notícias não segura leitor nem telespectador. A cobertura política é muito madrasta, porque, como diz o jornalista Rangel Cavalcante, tem dia que os fatos se recusam a acontecer. No tempo da ditadura, então, quase todo dia os fatos se recusavam a acontecer. E dos poucos que aconteciam a gente só tomava conhecimento quando já haviam perdido o impacto. No Congresso, no mais das vezes, os fatos nem são bem fatos: os jornalistas é que forçam a barra para torná-los atraentes. Raramente pinta um declaração arretada mesmo. Um rompimento histórico. Uma denúncia cabeluda, de derrubar ministro. Nada. A rotina é a sensaboria dos corredores vazios, os gabinetes abarrotados do silêncio de sonolentos funcionários; as votações previsíveis, de resultados previsíveis, de efeitos previsíveis; e, nas rodinhas do café, apenas as repetidas manifestações de priapismo verbal que não caberiam sequer na seção “Fórum” da Ele e Ela, de tão inverossímeis.
Foi aí que o girassol apareceu. Solitário e imponente, em frente à garagem. Eu vinha voltando do Congresso, numa fome danada, quando a flor me chamou atenção, não pelo fato de ser flor, mas por ter brotado num terreno ainda sem urbanização, usado como estacionamento. Elegante como um major, a flor mantinha-se milagrosamente incólume entre as rodas ligeiras que lhe raspavam o caule. Pedi ao motorista pra parar o carro e ao Marquinhos, cinegrafista cuidadoso e querido amigo, para produzir algumas imagens daquilo. Entendeu logo que eu ia inventar alguma coisa. Acertou.
Entrou pelo bico do pato…
Produzi um texto pequeno, crônica ligeira do girassol no descampado. Exaltei sua coragem de enfrentar o mundo com a única arma de que dispunha: a sua fragilidade, que impunha respeito. Gravei o off, deixei um editor cobrindo-o com as imagens do Marquinhos e fui-me embora. Lembro bem que a edição não ficou lá essas coisas, até porque não havia muito o que fazer com tão poucas opções de imagens, apesar da dedicação do cinegrafista. O texto também não era nenhuma obra-prima, se a gente lembrar que foi produzido por um cara varado de fome, que tinha acordado às 4 da manhã para fazer o Bom Dia, Brasil ao lado de Carlos Monforte e seguira para o Congresso para garimpar alguma coisa para o Hoje. Para ajudar a sustentar a “cascata”, colocaram uma musiquinha sobre as imagens do girassol. Pronto.
A croniquinha do girassol foi ao ar no telejornal local do dia seguinte. Moço, pra quê! Desde então o feito é lembrado com informações adicionais criadas pela imaginação de quem o conta e reconta e amplia e aumenta e cria e acrescenta. Nunca mais revi a tal matéria, sequer me animei a pedir uma cópia à Globo de Brasília. Ganhou o mistério das lendas. Soube há uns cinco anos de uma cópia contrabandeada para os Estados Unidos pelo pai de uma bolsista de uma universidade americana, que me parou na rua pra me cumprimentar. Pedi-lhe que pedisse à filha uma cópia da cópia, mas nunca tive o pedido atendido.
Esta é a história real. Ou a lenda real. Para evitar a acusação de cabotinismo, evito falar dela a meus alunos. Até porque não iriam acreditar mesmo… Se o faço agora é apenas para acentuar que notícia é o inusitado. Girassol em jardim a gente vê todo dia, não chama a atenção de ninguém. Já uma flor com todas as pétalas sobrevivendo entre rugidos de motores e rodas implacáveis… Sim, para ver essas coisas é necessário manter a capacidade de se alumbrar, como um sapo diante de um girassol. Eu, particularmente, gosto de ver o mundo com olhos de sapo. É mais divertido.
Pois é assim que surgem as lendas, e assim termina esta história. E entrou pelo bico do pato e saiu pelo bico do pinto, senhor rei mandou dizer pro senhor contar mais cinco.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail ? pedidos para <pjcunha@unb.br>