Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O seqüestro oficial da fala

RÁDIOS COMUNITÁRIAS

Muniz Sodré (*)

É bem possível que, no instante em que alguém começar a ler este texto, esteja sendo preso, com o devido seqüestro de seus equipamentos de trabalho, um jornalista comunitário. Toda semana ? e isto é decididamente estatístico ? a Polícia Federal, certamente sob pressão de forças nem um pouco ocultas, invade uma rádio comunitária, apesar das públicas recomendações em contrário feitas pelo ministro das Comunicações, Miro Teixeira, e pelo Grupo de Trabalho instituído para avaliar a legitimidade dessas atividades.

Para se ter uma idéia mais precisa, apenas no dia 13 de outubro deste ano foram fechadas três rádios na Zona Oeste do Rio de Janeiro (Campo Grande e Vila Kennedy) [dados apurados por João Paulo Malerba, aluno da Escola de Comunicação da UFRJ e integrante do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC) da ECO/UFRJ, coordenado pela professora Raquel Paiva]. Na semana de 6 a 10, tinham sido invadidas as rádios Castelo, Criativa, Operária e Cristal (Caxias) e a Rádio Jovem (Nova Iguaçu). Na semana anterior (29/9 a 3/10), tinham sido fechadas rádios no Norte do Estado. Ao mesmo tempo, algo idêntico acontecia com diversas emissoras no Maranhão, no Acre, em Minas Gerais e no Espírito Santo.

Em tudo isto mantém-se invariável o padrão: agentes federais invadem as rádios, exibem um mandado de busca e apreensão (geralmente, não deixam cópias, que são entregues apenas no meio do processo) e levam todo o material. Não raro, esse tipo de procedimento é apoiado por armas pesadas, e pode mesmo ocorrer que os responsáveis saiam dali algemados para a prisão, como ocorreu na invasão da Rádio Bicuda, no Rio de Janeiro. Após os fechamentos (quase sempre irregulares), vários processos são arquivados, ou então os jornalistas se deparam com grande dificuldade para obter informação sobre o andamento do processo.

Interesses e liberdade de expressão

Existem hoje cerca de 20 mil rádios comunitárias em todo o país ? só no Rio são 280, nenhuma autorizada. Como se explica o fato, quando se sabe que há para isto uma legislação específica? Segundo Sebastião Santos, integrante do Grupo de Trabalho do Ministério das Comunicações e coordenador da Rede Viva Favela, tudo isso ocorre para impedir a concorrência com as rádios comerciais, concentradas na maioria das capitais, das quais a rádio comunitária tira audiência. Cerca de dois milhões de ouvintes compõem as audiências AM e FM de rádios comerciais. Na opinião de Sebastião dos Santos, um terço dessa audiência ouve, às vezes, rádios comunitárias, o que acaba fazendo baixar os índices das comerciais e, conseqüentemente, reduzir o lucro publicitário.

A pretensão do Grupo de Trabalho é criar procedimentos e regras para a autorização de rádios comunitárias por parte do Ministério das Comunicações. São vários os problemas. Por exemplo, uma rádio não pode ter fins lucrativos se quer ser comunitária, o que termina impedindo a sobrevivência da atividade. Outro exemplo é o da igreja, que pode pertencer a uma comunidade específica, mas cuja rádio não é comunitária. Reivindica-se agora a aprovação de um critério pelo qual a entidade seja capaz de acolher todos os grupos da comunidade, sem discriminação. Há ainda o problema da antena de 25 W de potência e 30 metros de altura, com alcance indefinido, permitida pela Lei 9.612, mas contrariada por um decreto recente.

Como se pode perceber, há toda uma luta social pela liberdade de expressão num setor específico dos meios de comunicação. Estranhamente, porém, não se ouvem, na esfera pública, as vozes habitualmente eloqüentes na defesa dessa mesma liberdade. Basta lembrar o episódio recente da falsa reportagem no programa do Gugu Liberato. Diante da sanção de um tribunal, não foram poucas as vozes autorizadas a censurarem a censura prévia judicial. Tinham e continuam a ter razão, é preciso salientar, mas é também fundamental refletir sobre o fato de que essa razão já se produz com a benção e a iluminação da grande mídia, portanto com a garantia de uma legitimidade conhecida.

O problema é que das pequenas vozes comunitárias silenciadas nada costumam dizer os alto-falantes midiáticos. E por que não? Aí está o bom pretexto para que aconteça o "revival" do mesmo espírito que presidiu à emergência histórica da imprensa, ou seja, o da liberdade de expressão. A ameaça pode ser hoje maior do que no passado. Se antes o adversário era o Estado, com seus obscuros despotismos, hoje pode ser a própria indústria da mídia sob as aparências da informação esclarecida, mas na realidade sob a égide dos grandes interesses corporativos, que não costumam ter algo a ver com liberdade.

(*) Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ