Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O telejornalismo e o mico-leão-dourado

EXTINÇÃO DAS ESPÉCIES

Antônio Brasil (*)

O que o noticiário de TV e o nosso simpático mico-leão-dourado têm em comum? Segundo alguns especialistas, ambos estão com sério problemas para enfrentar um mundo novo e "em perigo de extinção" [veja nota "Noticiário de TV, perigo de extinção", sobre artigo de Howard Kurtz, com remissão abaixo]. É claro que esta ainda não é uma posição unânime, pelo menos em relação ao ex-todo-poderoso telejornalismo. Alguns discordam. Mas os pesquisadores apresentam dados preocupantes em relação ao futuro, como o declínio, envelhecimento e morte de parte da audiência (só nos Estados Unidos perdeu-se um terço do público regular nos últimos 20 anos) e os crescentes problemas políticos e financeiros. Ainda assim, estima-se que sejam 23 milhões de telespectadores assistindo às principais redes nos EUA e 45 milhões de brasileiros ainda grudados e conformados com a liderança solitária do nosso Jornal Nacional. A anunciada "extinção", por enquanto, parece distante.

Ainda bem. Principalmente para todos nós que ainda acreditamos no papel de conscientização política e no enorme potencial informacional do jornalismo de televisão. Desistir agora desse segmento estratégico para o futuro é condenar-nos à mediocridade e entregar o nosso principal meio de comunicação para aqueles que vêem a televisão somente como mais uma fonte inesgotável de ganhos financeiros, pessoais e políticos. É aceitar a mediocridade não só da TV, mas de todo o país. pois o meio é um espelho irritante que insiste em mostrar a verdadeira face da nossa realidade com todas as rugas e desgastes de muitos anos de excessos e descaso. É permitir, mais uma vez, que os sonhos e objetivos do segmento jornalístico tenham o mesmo fim das antigas promessas feitas tempos atrás em relação a uma "educação pela televisão". Elas foram relegadas ao esquecimento e hoje alguns desses programas vivem no isolamento dos piores horários da programação televisiva. Ainda existem e resistem, mas são reféns das boas intenções de alguns poucos diletantes em alguns canais públicos. Ninguém mais os assiste ou comenta. Tal como outras promessas tecnológicas, esses programas se perderam no caminho.

Se não pararmos para evitar o pior, em breve o telejornalismo corre o risco de competir com programas como o caríssimo e pouco eficiente Telecurso do Segundo Grau ou com excelentes produções como o Globo Rural, Globo Esporte ou até mesmo o programa de Serginho Groisman, marginal das madrugadas de sábado. Apesar de serem indiscutivelmente programas relevantes para a dignidade da televisão brasileira, todos acabaram ocupando os horários considerados "alternativos", aqueles que não incomodam ninguém. Além da qualidade, têm em comum uma disputa insólita para ver quem fica com o "pior horário da TV". Alguns desses programas também já tiveram muito prestígio e uma posição mais nobre nas grades das emissoras. Mas a nossa indiferença e omissão garantiram esse ostracismo televisivo para setores importantes de produção. Decisões consideradas "sábias" tomadas pelos novos gênios da programação de uma televisão de mercado, com o apoio de pesquisas duvidosas que apontam o público como o grande culpado. Damos ao povo o que eles querem! Segundo essa nova tendência, a busca de audiência torna-se boa desculpa para justificar a ganância por maiores lucros. Caminham, surpreendentemente, de mãos dadas para nos garantir na televisão sempre o que há de pior e mais econômico.

Linguagem sagrada

Pelo menos, em teoria, parece simples. Se o público muda de canal é porque o programa não agrada. Logo, mudamos o programa. Até aí tudo bem ou tudo mal, tanto faz, se o programa é de entretenimento. Mas quando a mesma regra é aplicada ao telejornalismo, estamos com um sério problema. Os telespectadores mudaram de canal numa matéria séria sobre o Oriente Médio e ficaram no último escândalo da estrela pop. Viva a estrela pop, detona-se a matéria séria e culpa-se o público. A partir daí, impõe-se uma nova dieta aos telejornais. Mais estrelas pop e menos notícias sérias. Tudo muito simples e lógico. Lógica de mercado no principal e muitas vezes único veículo de informação para o brasileiro médio. E, apesar das certezas, ainda ficam surpresos quando constatam que, mesmo assim, o público continua abandonando rapidamente o barco do noticiário de TV e embarcando em outros programas, novos interesses e mídias alternativas.

É dessa maneira, fria e calculista, que alguns administradores de empresas, de qualquer tipo de empresa, passaram a determinar o que vamos assistir hoje à noite nos principais canais de TV. Tudo sempre muito lógico e simples. Se cai a audiência, cai o programa. Não interessa a sua importância ou responsabilidade social. Se o telejornal perde audiência, muda-se o conteúdo e o horário à vontade, mas garante-se os bons índices. Não importa que a tendência da audiência continue diminuindo há muitos anos e os âncoras famosos, no exemplo americano, sejam sempre os mesmos. Também não importa que todos eles já estejam prestes a se aposentar ? título de curiosidade, registre-se que somam a assustadora idade de 192 anos. Tom Brokaw, da NBC, na liderança de audiência, é o mais jovem com 62 anos, Peter Jennings (ABC) está com 63 e Dan Rather (CBS), com 70.

A idade obviamente não é o problema. A questão reside numa situação de declínio com total falta de renovação. Todas as mudanças tendem a ser puramente cosméticas, sempre voltadas para tornar os telejornais mais dinâmicos e modernos, mas invariavelmente menos densos e menos informativos. Parecem cada vez mais com revistas semanais. O telejornal da NBC passou a ser temático, ou seja, diariamente segue um determinado tema. Sabe-se com antecedência como serão todas as matérias das semanas. Notícias passam a ser acessórios. Produz-se o que os telespectadores gostariam de ver. E dá-lhe matérias sobre medicina, meio-ambiente, novas oportunidades de negócios ou qualquer outra coisa que seja controlável e previsível. É o jornalismo temático light! O fato é que o meio não está bem, sofre de problemas graves e vislumbra um futuro ameaçador e incerto.

E formato dos telejornais? Este continua intocável. Todos se parecem e são sempre os mesmos. Nada muda. A credibilidade, ao contrário, é cada vez mais duvidosa. Nada é mais irreal do que assistir a um telejornal. Mas isso acontece tanto no Brasil como nos Estados Unidos. Numa saraivada frenética de notícias e vídeos desimportantes, amenidades mal-produzidas e muito pouco conteúdo, tudo se assemelha à verdade… E os jornalistas de TV não ajudam muito. Parecem todos vindos de um outro planeta, de algum lugar distante da nossa realidade onde tudo é sempre perfeito. Não parecem gente pois não cometem erros e falam como robôs, todos iguais.

Jornalistas de TV atuam como atores de uma peça absurda. Os âncoras e apresentadores, estrelas de primeira grandeza e altíssimos salários, não preservam as características fundamentais do meio televisivo. O coloquialismo e a proximidade com os telespectadores foram substituídos pela arrogância da própria perfeição. Há alguns anos, repórteres ainda procuravam alternativas e criavam "erros induzidos" para parecerem gente como a gente. Hoje, poucos conseguem convencer que descrevem a realidade. Para o público, o verdadeiro reality show está acontecendo ali do lado, no outro canal, numa Casa dos Artistas ou no Big Brother Brasil. Esses programas já contam até com chamadas jornalísticas durante a programação. A linguagem sagrada dos noticiários se tornou infotainment ? misto de informação e entretenimento ? e agora vende tudo a qualquer preço, de voyeurismo à ofertas de supermercado. Só não convence mais o telespectador de que o telejornal merece ainda ser levado a sério.

Situação absurda

É por essa e outras razões que o vídeo com um pequeno trecho do telejornal na internet da jornalista Lilian Witte Fibe, divulgado insistentemente pela rede nas últimas semanas, ganhou a maior importância. Principalmente para aqueles que ainda buscam soluções para as ameaças de "extinção" do nosso meio. Por enquanto, poucas pessoas têm o privilégio de acompanhar regularmente o trabalho da ex-apresentadora da Globo no seu pequeno e pobre telejornal alternativo, o Jornal da Lilian <www.terra.com.br/jornaldalilian>. Ela, assim como outros jornalistas pioneiros na rede, como o Paulo Henrique Amorim <www.uol.com.br/uolnews> tiveram coragem para desbravar alternativas para o telejornalismo ao apostar na migração da TV para a internet. Eles indicam novos caminhos para os noticiários de TV assim como, em outras épocas, alguns pioneiros transpuseram os limites do meio radiofônico e criaram uma nova linguagem audiovisual na televisão.

O vídeo em questão se tornou uma referência para o potencial da internet. Lá tudo ainda é possível. Essas imagens chegaram a mim com o sugestivo título de "Acontece nas melhores famílias" ? e pelo jeito acontece mesmo. É impossível assisti-lo e não ter a mesma reação. Já testei várias vezes com vários amigos e é mesmo hilariante. O conteúdo do vídeo em si não é o que nos chama a atenção. Assim como algumas das melhores piadas, o que importa é o seu formato. Trata-se de mais uma dessas "notinhas esdrúxulas", tão comuns em nossos telejornais de hoje em dia, lidas da mesmíssima forma de sempre por uma boa profissional como Lilian. A nota fala de uma velhinha de 86 anos, numa cadeira de rodas, que foi presa na alfândega de Miami tentando contrabandear um grande carregamento de pílulas de ecstasy acompanhada do seu namorado, de 56 anos. Este, ao ser preso, para surpresa geral declarou que nada sabia sobre o carregamento da droga. Na verdade, ele pensava que a sua namorada estava carregando pílulas de…Viagra.

Perceberam o absurdo? Engraçado? Provavelmente, não. A não ser para Lilian. Jornalista experiente e tarimbada, não resistiu ao completo nonsense de mais esse típico exemplo do jornalismo moderno de "gracinhas" e se tornou, em frente às câmeras da internet, mais uma vítima dos novos tempos. Não, ela não reclamou ou insultou o editor. Leu a notícia enquanto pôde. Mas só durante alguns segundos. Ao perceber o conteúdo da notinha que lia, desandou a rir de forma incontrolável, ao mesmo tempo em que tentava manter uma compostura profissional para explicar o fato inusitado. Não conseguiu. Saiu do ar no meio de um ataque espontâneo de riso incontrolável. Parecia alguém que tenta mas não consegue contar uma piada: no meio do história já está morrendo de rir da própria graça ou desgraça.

O que tem a ver esse vídeo com o risco de extinção do telejornalismo? Tudo ou nada. Mas claramente indica algo precioso. Primeiro, o potencial de divulgação da internet, mesmo para vídeos pesados e demorados. A nova tecnologia de banda larga é inevitável e caminha rapidamente ao nosso encontro. Segundo: todos os que assistem a esse vídeo têm uma única reação idêntica àquela da apresentadora. É inevitável uma surpresa ao vê-la tentando manter um profissionalismo que muitas vezes beira ao anacronismo. Todos sentem uma inevitável empatia e simpatia com uma situação imprevisível e inesperada. Lilian se comporta como um de nós, numa situação absurda, mas com reações compatíveis. A espontaneidade pode ser uma boa solução para uma crise que pode não ser de público, mas de credibilidade no meio.

Envelhecimento precoce

Concordo com um dos nossos leitores ao comentar uma matéria de Cristiana Mesquita, neste Observatório, sobre os perigos do telejornalismo atual ["Por que os jornalistas morrem?", veja remissão abaixo]. Não basta simplesmente reportar e perseguir eternamente o "Santo Graal" da objetividade jornalística. Estamos, sim, frente a mais um daqueles preceitos importantes que servem para nortear o jornalismo de qualidade. Mas quando levados ao extremo da insensibilidade e da indiferença, os jornalistas podem estar diante de uma das principais causas do afastamento do público não só dos noticiários de TV, mas de todo o jornalismo considerado de qualidade.

Não é à toa que a ABC News se mobilizou tanto nas últimas semanas para substituir um dos mais respeitados jornalistas da televisão americana ? Ted Koppel, do prestigioso Nightline, pelo humorista travestido de entrevistador, o impagável David Letterman. Em tempos de crises crescentes, num mundo cada vez mais violento e repleto de más notícias incompreensíveis para a maioria, "gracinhas" inocentes na TV rendem mais audiência do que os nossos velhos telejornais. Contextualizar as notícias e explicar o mundo é um investimento de longo prazo, complicado e muito arriscado. Nem todos querem saber sobre a realidade quando ela é hostil. Se não podemos mudar a realidade e o mundo, mudamos de realidade ou de canal.

Na televisão aberta, cada vez mais os horários nobres são preenchidos pelo entretenimento. Nos Estados Unidos, os telejornais sérios começam às 18h30. Foram aos poucos sendo isolados em horários ainda importantes mas não tão nobres. Show do Milhão e reality shows, além de outras opções para o acesso à informação como TVs a cabo, internet ou mudanças de hábitos das pessoas, passaram a ser competidores poderosos contra os noticiários de TV.

Mas o maior problema reside numa questão de "descaso" com o público, seja ele velho ou jovem. Os velhos, acreditam alguns editores, vão continuar assistindo sempre aos telejornais, até morrer. É muito tarde para quebrar o hábito. Os jovens? São todos uns "alienados" e não têm jeito mesmo. Preferem as alternativas oferecidas pelas novas mídias, o controle remoto ou "descontrole" de alguns apresentadores de televisão muito ambiciosos mas com óbvios problemas mentais.

A verdade é que essa guerra pelo futuro dos telejornais pode estar sendo vencida ou perdida neste exato instante. Talvez devêssemos seguir o exemplo de alguns ambientalistas dedicados. Eles obtiveram muitos sucessos ao impedir o que parecia ser uma inevitável extinção de algumas espécies raras e importantes, como os nossos simpáticos miquinhos. Nem todos foram confinados aos zoológicos. Muitos tentam sobreviver em reservas ambientais protegidas contra inúmeros predadores, entre eles os homens maus. Telejornalismo e educação na TV também deveriam ser preservados em horários nobres da programação e não isolados ou ignorados pelo grande público.

Talvez ainda não seja tarde demais para evitar uma ameaça de envelhecimento precoce do telejornalismo, ou mesmo sua extinção. Mas o descaso com o público, a negligência com a matéria-prima da informação e com o bom conteúdo jornalístico, aliado ao desprezo pelas alternativas que estão sendo oferecidas pelas novas tecnologias, certamente contribuem para o fim dos nossos telejornais ? dos sérios, pelo menos.

(*) Jornalista, coordenador do laboratório de televisão, professor de telejornalismo da UERJ e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ.

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