PORTO ALEGRE & DAVOS
Deonísio da Silva (*)
Você vê, ouve e lê. Impossível evitar o noticiário. Porto Alegre tomou conta do Brasil com a força do Fórum Social Mundial. Estão presentes autoridades do mundo inteiro. Não apenas figuras políticas, nossas velhas conhecidas, mas tautológicas autoridades de autores cuja produção intelectual é referência bibliográfica nos temas de que se ocupam, caso do lingüista Noam Chomsky.
Durante a Guerra do Vietnã, suas complexas teorias de linguagem tinham a simpatia dos cursos de Letras, entre outros motivos, porque os alunos sabiam ser ele um dos mais ferozes críticos que nos EUA denunciavam os conflitos no sudeste asiático.
De boas intenções o inferno está cheio, como sempre se soube desde São Bernardo, autor da frase que se tornaria célebre, mas continua sendo um bom critério averiguar a intenção dos discursos, das falas, das intervenções, dos artigos e das declarações que surgem no terreno minado desta outra guerra, travada diuturnamente na imprensa. A luta mudou de lugar, as forças em conflito foram agrupadas em outros campos de batalha e os meios de comunicação social anunciam-se como o palco do grande Armagedon. E Noam Chomsky chegou a Porto Alegre dizendo o óbvio sobre a anunciada guerra dos EUA contra o Iraque. O motivo é estar Sadam Hussein sentado sobre as maiores reservas de petróleo do mundo.
É uma obviedade, mas foi Chomsky quem disse. É semelhante o caso do professor Perry Anderson, da UCLA (Universidade da Califórnia) e as perspectivas que antevê para o atual governo do Brasil no artigo "Lula?s inheritance: The Cardoso Legacy" (London Review of Books, na cabalística referência de datas: 12/12/2002, volume 24, número 24 ? como lembrava um humorista, azar mesmo é sonhar com Clóvis Bornay, apostar no veado e, ao conferir, ver que deu leão…). Perry Anderson tem na Europa moderna a sua principal área de interesse e já publicou livros abordando temas como a passagem da antigüidade ao feudalismo, as linhagens do Estado absolutista e as origens do pós-modernismo.
Cruzar os dedos
Perry Anderson começa seu artigo dizendo que a vitória de Lula trouxe de volta a América Latina para as "world politics", pois o continente andava largamente esquecido desde a guerra das Malvinas. "Since the Falklands War…", naturalmente, no original, porque "Las Malvinas son argentinas" foi dístico da ditadura que vitimou aquele país e os autores do recurso que visava prorrogá-los no poder mediante uma guerra ainda mais insensata do que são todas as guerras, não pode ser aceito nem como referência num artigo!
Comparando os dois países por meio de referências a personalidades, Anderson diz que Carlos Menem, "um completo ignorante em economia", deixou que Domingo Cavallo explicitasse seu lado satânico. Fernando Henrique Cardoso, "infinitamente mais preparado do que Menem", contou, ao contrário, com a discrição de Pedro Malan, originalmente seu candidato à sucessão. Quando a estabilização obtida ainda no primeiro governo começou a dar sinais de que o Brasil ia complicar-se muito, se mantidos aqueles rumos, o então presidente não demitiu Pedro Malan. Segundo Anderson, ele pagaria caro pela gratidão, ainda que seu governo, ao lado da Rússia, tenha sido tratado com toda a deferência na obtenção de créditos externos pelos laços de amizade que uniam Malan a altas autoridades do mundo financeiro internacional, especialmente dos EUA. Fernando Henrique e Bóris Yeltsin foram mantidos no poder porque as duas permanências interessavam estrategicamente aos EUA. O Malan russo foi Chubais.
Anderson diz que FHC, de predominância européia em sua formação, mudou de idéia no exílio e passou a usar cada vez mais os EUA como referência central, defendendo que o Brasil deveria ter uma agremiação equivalente ao Partido Democrata. Guido di Tella, que foi ministro das Relações Exteriores da Argentina quando FHC ocupava o mesmo cargo no Brasil, não deixou por menos: "Temos relações carnais com os EUA; o resto do mundo não conta para nós". Todos viram no que resultaram as tais "relações carnais", mas este espaço é elegante e o signatário deste artigo não vai usar o verbo que coloquialmente é invocado no Brasil para designar quem quebrou a cara num projeto.
Anderson diz que FHC pensava do mesmo modo, sua prática diplomática era idêntica à do colega argentino, mas ele, elegante, e ajudado pelo fato de o português ser uma língua mais cheia de delicadezas ( "Portugueses is a more edulcorating idiom"), evitou explicitar tão cruamente o seu trabalho e o seu projeto.
Se ainda não o fez, seria bom que a imprensa brasileira oferecesse aos leitores a tradução do artigo. Afinal, é raro um schollar ter a humildade de concluir um ensaio com frase tão desconcertante e modesta, contrariando a arrogância que infesta quase todo o artigo: "For the moment, fingers crossed". Quem deve cruzar os dedos, Dr. Anderson? Nós, no Brasil, ou vocês, do Norte?
Crioulo doido
O mundo é mais prático no Norte. Ao menos, parece mais objetivo. Precisamos examinar melhor as diferenças óbvias entre Davos e Porto Alegre. Talvez, como recomendavam antigos sábios da Roma clássica, ou quem sabe a própria escolástica na doutrina de Santo Tomás de Aquino, tentando juntar filosofia grega e cristianismo, in medio virtus. A virtude está no meio. Ou, como diz o povo, nem lá, nem cá. E o presidente Lula, depois de ir a Porto Alegre e a Davos, começou a ser anunciado como a personalização da terceira via. Em Porto Alegre, fez comício, como sempre. Em Davos deixou sem fronteiras o carro-chefe de seu programa de governo, propondo um Fome Zero mundial.
De programas, o governo Lula parece bem fornido. De intenções, também. Se apenas o Fome Zero der certo, já terá sido um bom começo ? embora Frei Betto, seu conselheiro-mor, certamente poderá lembrá-lo do conselho dos Evangelhos: "Nem só de pão vive o homem". Jesus respondeu assim quando foi tentado pelo Demônio no templo de Jerusalém. Satanás disse que se Jesus o adorasse, teria o poder de transformar pedras em pães.
No atacado, tudo bonito. Mas e no varejo? Cadê as ações? Olhando aquelas autoridades todas, especialmente as menores, as chamadas de segundo e terceiro escalões, o leitor pergunta: será que elas todas concordam? Se concordam, por que não fazem o que seus chefes dizem? E se não concordam e não fazem, por que não são substituídas?
Precisamos ouvir, ver e ler mais para tirar conclusões? Ou o presidente Lula foi eleito para dar continuidade ao projeto de FHC? No fórum particular de leitores e eleitores calou fundo a tietagem do cartunista Claudius, que subiu ao palco em Davos e ofereceu ao presidente Lula uma faixa em que destaca a poção mágica do Asterix brasileiro: o número de votos que o levaram à presidência da República.
Sim, de acordo, mas a poção mágica por si só não resolve. É cedo para julgar? Sim. Menos de trinta dias. Mas os primeiros passos ameaçam negar velhas teses do Partido dos Trabalhadores. Exemplos não faltam, mas dois são cristalinos: o aumento dos juros e a anunciada reforma da Previdência. Aquilo que o PT negou a FHC agora vai propor no Congresso. Setores do PT já ameaçam com a oposição!
Se tal acontecer, nenhum schollar vai explicar mais nada. Precisamos ressuscitar é o velho samba de Stanislaw Ponte Preta, o do crioulo doido, com cuja transcrição o signatário encerra essas linhas.
Foi em Diamantina / Onde nasceu JK
Que a princesa Leopoldina / Arresolveu se casá
Mas Chica da Silva / Tinha outros pretendentes
E obrigou a princesa / A se casar com Tiradentes
Lá iá lá iá lá ia / O bode que deu vou te contar
Lá iá lá iá lá iá / O bode que deu vou te contar
Joaquim José / Que também é
Da Silva Xavier / Queria ser dono do mundo
E se elegeu Pedro II
Das estradas de Minas / Seguiu pra São Paulo
E falou com Anchieta / O vigário dos índios
Aliou-se a Dom Pedro / E acabou com a falseta
Da união deles dois / Ficou resolvida a questão
E foi proclamada a escravidão/ E foi proclamada a escravidão
Assim se conta essa história/ Que é dos dois a maior glória
Da. Leopoldina virou trem / E D.Pedro é uma estação também
O, ô , ô, ô, ô, ô / O trem tá atrasado ou já passou
O, ô , ô, ô, ô, ô / O trem tá atrasado ou já passou".
(*) Escritor, doutor em Letras pela USP, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A Vida íntima das palavras, A melhor amiga do lobo e Os segredos do baú