PROVÃO
Discutir questões específicas do Provão como se fossem passíveis de ajustes é desconhecer seu propósito e objetivo político de desmonte de um ensino superior brasileiro crítico, voltado para a pesquisa e a extensão e para a produção de conhecimento público. É tapar os olhos para o que está acontecendo em nosso país. É negar que o Provão faça parte da política neoliberal, do Banco Mundial e do Bird, para a educação na América Latina. Tratar o Provão como um instrumento de avaliação eficaz é desconhecer tudo o que já se produziu em estudos no Brasil e no mundo em relação à avaliação institucional. Apresentar contradições da própria avaliação como sendo do movimento estudantil produz sentidos equivocados, seja propositadamente ou não. Idéias desvirtuadas não nos interessam. Vamos ao verdadeiro debate:
A hegemonia das políticas neoliberais provocou e continua provocando forte impacto sobre a educação, a universidade e a avaliação institucional. Os grandes organismos internacionais de suporte dessa doutrina, notadamente o Banco Mundial, elaboraram propostas para a educação no marco da globalização, compreendendo a avaliação institucional como parte ativa das estratégias a serem desenvolvidas. Para o Banco Mundial, interessado na eficiência educativa para descarregar os custos de financiamento por parte do Estado, as universidades devem ser cada vez mais ?autônomas? para mais efetivamente responder ao pacto com as forças do mercado. Devem produzir conhecimentos úteis e rentáveis, como condição de sua sobrevivência no competitivo mercado educacional. Receberão, portanto, atenção prioritária aquelas instituições que são mais capazes de liberar o Estado dos encargos de fundos públicos e que enfatizam os agentes e os financiamentos privados. (José Dias Sobrinho, educador e professor da Unicamp, no artigo "Avaliação institucional da educação superior: fontes externas e internas".
Como tudo o que é humano e, portanto social, como é o caso da educação, se banha em valores e ideologias e tem uma significação ineludivelmente política, a avaliação de uma instituição educativa deve ser também compreendida como um fenômeno público e que interessa a toda a sociedade, muito mais que uma tarefa simplesmente técnica e de ação restrita, que pudesse encobrir as dúvidas e as contradições que são virtualmente portadoras de transformações. Sendo mais direto: a avaliação institucional, neste momento, pode ser um instrumento de neoliberalismo e, então, entre outras coisas, de favorecimento das políticas franca ou veladamente privatizantes ou, por outro lado, a avaliação universitária se realiza como um programa de resistência a essas políticas, de afirmação do sentido público de educação e de seus valores e princípios mais consistentes. (José Dias Sobrinho, idem)
Aí é que está a verdadeira disputa. É com objetivos inversos aos do Provão que estamos tentando construir uma "avaliação pra valer". Não se pode discutir o Provão desvinculando o intuito político do acadêmico, assim como do técnico. Quando colocamos nossas ponderações e críticas, estamos também questionando a política de educação do governo. Não querer uma avaliação meramente punitiva é querer uma transformadora e propositiva. É uma contradição da própria avaliação, e não nossa, o MEC não ter fechado até hoje nenhum curso e encenar publicamente uma peça de teatro com o CNE (Conselho Nacional de Educação) de fecha e não fecha. Transformar o ensino superior deste país é muito mais do que fechar cursos, no entanto nem esse objetivo apresentado pelo ministério é cumprido. A aplicação do Provão reduz a educação a um grande mercado competidor, por meio do ranking e de muitos outros elementos apresentados ao longo deste texto. É justamente ao mercado que o Provão reduz o ensino. Um ranking exposto na prateleira. Marketing eleitoral.
Uma avaliação que produz a competitividade de acordo com as leis da selva ou do darwinismo social e fortalece o entendimento da educação como um elemento do mercado acaba retirando da universidade a sua inalienável prerrogativa da crítica. Como mais um elemento de mercado, a universidade não tem o afastamento necessário para o exercício da crítica. Tudo vai passar, então, como se o mercado devesse ser naturalmente, espontaneamente, soberanamente, o organizador da sociedade. (José Dias Sobrinho, idem)
É o mesmo CNE que dá a palavra final sobre a abertura ou não de cursos no país. Entre existirem critérios rígidos para a abertura de novos cursos e eles serem aplicados vai uma longa e tenebrosa caminhada a qual o MEC não faz questão de trilhar. Assim a comissão de especialistas é passada para trás, faz papel de palhaço. Está na revista Veja (27/5/01). O CNE, com a anuência do MEC, se transformou no maior ninho de corrupção e picaretagem da educação no país. Os mesmos senhores que permitem abrir e "avaliam" são os donos das universidades. Mesmo com os critérios, a cada dia surgem novos "barracões e shopping centers" nas cidades.
Além do mais, a análise dos processos, que é feita pela CES, tem revelado um excesso de rigor por parte de certas comissões, que não encontra amparo legal nem é necessária para assegurar a qualidade desejável para os cursos de uma determinada área. (Trecho retirado do parecer 1070/99 da Câmara Superior de Educação, do CNE)
Não querer ver a realidade é negar que essa é a política oficial do governo para a expansão das vagas no ensino superior brasileiro: quantidade, e não qualidade; privada, e não pública. Teremos mão-de-obra farta, para ocupar o mercado de trabalho colonizado pelo capital estrangeiro, e pouca ou quase nenhuma pesquisa para desenvolver novas tecnologias, garantir a soberania nacional, o bem-estar público, descobrir vacinas e novos campos do saber.
No caso da públicas, avaliação para fins de ranking cria ilhas de excelência e oceanos de carências, pois os recursos passam a ser compatíveis com as classificações baseadas em critérios homogêneos e não levam em conta a história, as condições, e nem as missões específicas e concretas. (José Dias Sobrinho, idem)
Na UFRJ, de acordo com o Prograd (Programa de Auxílio à Graduação), instituído pela reitoria, aquela mesma imposta pelo MEC, um dos itens que o curso deve atentar para ter direito aos recursos do programa é justamente uma boa nota no Provão. Na Ufes, o reitor mandou dizer que não apoiará o curso enquanto ele não melhorar, mesmo sabendo que o E é fruto de boicote dos alunos. Na UFPR, os coordenadores são contra o Provão, mas só vêem possibilidade de conseguir os recursos para os laboratórios se os alunos forem bem no exame. Só o fato de serem públicos estes cursos já deveriam garantir seu direito às verbas. Lutar contra essa lógica já é substancial razão para o boicote. Um doente sem remédios, e para o sadio, vitaminas. Me lembra um certo projeto do Banco Mundial.
Existir uma única prova para todos os cursos do país significa estabelecer um programa único. Incompatível com a LDB, que dá autonomia aos cursos para desenvolverem seus projetos pedagógicos de acordo com suas regionalidades e o seu papel social inserido na comunidade a que pertence. Reconhecer que há regionalidades e perspectivas próprias para cada curso se orientar é enxergar o Brasil como ele é: complexo e multicultural. Isso não vai de encontro às diretrizes curriculares de comunicação, mas é expurgado com o provão. A simples reformulação de questões não resolve essa contradição. Propomos o desenvolvimento de avaliações que respeitem os objetivos e projetos pedagógicos de cada instituição.
Se o importante para os alunos é passar nos exames e, para o curso, é classificar-se bem, alimenta-se, então, a tendência a ensinar aquilo que supostamente ?vai cair na prova? e os mais adequados jeitos de se obter bons resultados. (José Dias Sobrinho em "Avaliação da educação superior", Ed. Vozes, 2000; RJ)
"Um exame tende a restringir o currículo e a incentivar a atenção indevida e mesmo exclusiva dos professores e dos estudantes para o conteúdo privilegiado pelo exame. Esta orientação do currículo para o exame pode levar à exclusão de importantes objetivos e experiências educacionais. A tendência é de os exames determinarem a forma do currículo, e não este determinar a forma daqueles. Em suma, um poderoso sistema de exame pode estreitar e homogeneizar o currículo e o ensino." (José Camilo dos Santos Filho, professor da Unicamp, no artigo "Análise teórico-política do Exame Nacional de Cursos")
A preocupação das instituições em se desempenharem bem nesses exames pode levá-las equivocadamente a abandonar suas características regionais e originais e privilegiar as características demandadas pelos exames nacionais, reforçando a homogeneidade do currículo e dos profissionais formados. (José Camilo dos Santos Filho, idem)
Impor ao formando a realização da prova para obter o diploma pode ser até legal, mas é ilegítimo, amoral e autoritário. Com um Congresso corrupto, não há, aliás, legitimidade em muitas decisões. Uma afronta à autonomia universitária. Só isso também já justifica o boicote e o apoio dos professores. Entregar a prova em branco, além de não prejudicar o estudante, desvirtua o ranking, questiona-se o Provão no que ele tem de pior. Fica desestruturado, capenga. Acaba-se com o instrumento de marketing das instituições e do governo. Pauta-se a mídia.
Querer incutir na cabeça dos estudantes que não ir fazer a prova é a melhor opção é pregar a desmobilização. O governo FHC é um dos mais autoritários de toda a história deste país. Matou sem-terra, reprimiu as manifestações dos 500 anos, proclamando estado de sítio e suspendendo as garantias individuais em Porto Seguro. Reprimiu a greve dos professores em São Paulo, a passeata de estudantes contra a Alca na mesma Avenida Paulista com requintes de tortura. Agora em Salvador, até uma universidade federal foi invadida por tropas militares para reprimir estudantes, fato que nem na ditadura foi possível. E a última: tanques do Exército para acabar com manifestação da Polícia Militar, que no momento não bate, mas reivindica melhores condições de trabalho. Isso para falar nas mais famosas e que repercutiram na mídia.
Dizer que o MEC não saberia o que fazer se não comparecêssemos ao exame é ser muito otimista, logo se nota que o proponente nunca fez movimento coletivo. Eu sei o que o MEC faria: nada. E os estudantes ficariam sem poder trabalhar e não poderiam também ingressar nos cursos de pós-graduação. Rebeldia seria as universidades se negarem a inscrever os estudantes no Provão. Mas e aí, não é ser rebelde? Além disso, de uma coisa estamos certos: atitude política não se caracteriza por seu potencial em prejudicar o manifestante, como fazem crer alguns que sugerem essa idéia tão freqüentemente. Ou seja: um protesto não é tão mais político quanto mais arriscado.
Ser falacioso é afirmar que a ACO e o Paiub são complementares ao Provão. A ACO, vá lá, é menos mal, mas tem seus problemas também. Os representantes da comissão apresentam-se como juizes do ensino, árbitros. A ACO não permite que a instituição participe do processo de avaliação, negando a dialética tão benéfica que existe na avaliação institucional. Não leva em conta o processo, o conteúdo das relações; só as estatísticas e os números de cada curso em relação a laboratórios, professores e adequação do currículo. No caso das públicas, é um desperdício de dinheiro público, pois esses dados o próprio ministério já tem. O mais interessante é que os resultados da ACO não batem com os resultados do Provão.
Quanto ao Paiub (Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras), praticamente não existe mais. Hoje, é concebido, seja pelas universidades, seja pelo Inep e o MEC, como "auto-avaliação". No entanto, não é disso que se trata. Em primeiro lugar, o Paiub conta também com uma fase de avaliação externa, pensada de forma bem diferente da ACO ou do Provão. Em segundo lugar, principalmente no caso das universidade públicas, não há recursos disponíveis. O MEC alega recomendar às universidades que façam o Paiub, como avaliação interna, deturpando o real sentido do programa. Justamente porque o projeto do Paiub é completamente antagônico ao do Provão, é global, multifacetado, participativo, contextualizante, integrador e permanente. O Paiub é legítimo, construído pelas universidades e anterior ao Provão. Fazê-lo funcionar é negar o Provão, daí seu desaparecimento. Um exemplo: em 1998 foi divulgada uma avaliação institucional da UFRJ, talvez a última, feita nos moldes estabelecidos pelo Paiub. São cinco livros grossos, mais de 1.000 páginas, sobre tudo o que pode ser aperfeiçoado, transformado e melhorado dentro da universidade, respeitando a autonomia interna da instituição e levando em conta seus deveres com a pesquisa e a extensão. Porém, o MEC prefere apenas uma folha com conceitos (sic).
O Paiub me remete à disputa citada no início do texto: a questão política e os objetivos de cada tipo de avaliação. Boicotar o Provão é querer uma universidade crítica. É negar o "robôzinho" em que querem nos transformar. Não legitimar a subserviência do país.
O exame nacional de cursos fundamenta-se numa concepção tecnocrática de educação superior, onde os graduandos são vistos como ?produtos? que têm um valor de utilidade na economia. (José Camilo dos Santos Filho, idem)
"No Rio os estudantes de Jornalismo da UFRJ e da Universidade Federal Fluminense (estes últimos apoiados pela direção da escola) anunciaram no ano passado o boicote ao Provão, mas não tiveram coragem de faltar ao exame. Assim é mole. Compareceram à prova e entregaram as questões em branco. Azar o deles. Toda vez que exibirem o currículo escolar para conseguir emprego numa redação constará como estigma que se formaram em 2000, o ano do zero no Provão. É uma safra de jornalistas sob suspeita, aos olhos do mercado de trabalho, tal como o Bordeaux 1991 no comércio de vinhos. Os conhecedores sabem bem o que significa esse labéu." (Luis Edgar de Andrade, em "Quem tem medo do Provão?", publicado na Revista do Provão 2001)
Não, não somos vinhos que precisam ser degustados, testados, saboreados, exauridos. Somos pessoas, conscientes do nosso dever e do nosso papel na história. Não queremos rótulos colados em nossas testas.
Parabéns aos estudantes de Comunicação, remar contra a maré fortalece a musculatura. (Ivan Valente, deputado do PT e especialista em educação)
(*) Coordenador Geral da Enecos