Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O voto e o lugar das boas intenções

OBSERVATÓRIO ELEITORAL

Deonísio da Silva (*)


"Eu tenho uma tesourinha/ que corta ouro e marfim/ serve também para cortar/ Línguas que falam de mim." [Marchinha da autoria de Sinhô, executada no carnaval de 1919]


De boas intenções o inferno está cheio, disse, repetiu e tem sido repetido por muitos, há dez séculos, um teólogo francês, natural de Clairvaux, nascido em 1090 e falecido em 1153, mais conhecido como São Bernardo, cuja existência é lembrada pela Igreja, todos os anos, dia 20 de agosto.

As pesquisas de intenção de voto revelam nossa conhecida obsessão por conhecer o futuro. Mas talvez tenham esquecido os caminhos percorridos. Na Antigüidade clássica, marcada por decisiva influência sacerdotal, gregos perguntavam a deuses pagãos. Romanos destripavam aves. As pesquisas de intenção de voto inserem-se nessa terrível busca do futuro. São Bernardo desconfiava das intenções. Acho que, neste particular pelo menos, devemos seguir o santo. Sua frase foi brandida, não apenas contra os desafetos, mas também aos aliados, e tornou-se proverbial para denunciar que as boas intenções, além de não serem suficientes, podem levar a fins contrários aos esperados.

São Bernardo poderia ainda inspirar nossos marqueteiros, pois dizia que a pregação deveria deixar em segundo plano as razões, os argumentos, a própria doutrina e privilegiar como destino o coração das pessoas. Quer dizer, a emoção haveria de prevalecer sobre a razão. Falava bem, atingia o "coração das pessoas" e por isso recebeu o título de Doutor Melífluo. Seu emblema é, muito apropriadamente, uma colmeia. Apesar de ter combatido muito os judeus, não deixou de aproveitar o ensinamento talmúdico sobre o verbo: "A palavra é como a abelha; tem mel e ferrão".

Euforia e depressão

O horário eleitoral, novela política dirigida por conhecidos marqueteiros, os novos oráculos dos candidatos, está cuidando muito da aparência e pouco da essência. Ou melhor, não conseguem conciliar as duas entidades. Praticaram tal assepsia na aparência, tudo está tão bem cuidado que, sendo esmola demais dos santos candidatos aos telespectadores pecadores, esses últimos estão desconfiados do caminho que lhes é oferecido para a salvação.

Vinicius Torres Freire reclamou na Folha de S.Paulo (26/8/02, pág. A 2) "mais agressões no horário político, por obséquio". Tem razão o comentarista. Com efeito, o juiz eleitoral Caputo Bastos não se limita a liberar programas do candidato José Serra que mostram Ciro Gomes proferindo comentários sobre o Real que hoje servem de alento ao primeiro e de desdouro ao segundo. Diz o juiz: "O eleitor não espera que o horário eleitoral seja utilizado para agressões, intrigas". E o magistrado dispõe-se a não autorizar "censura odiosa". Lembro uma sentença em que no lugar de Caputo Bastos estava Bento da Costa Fontoura, o juiz que manteve a proibição do livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, autor que ficou mais tempo proibido no período pós-1964. E no lugar do eleitor, está o leitor, a quem em toda a sentença o juiz denominava "brasileiro médio".

Em todos esses casos, o futuro aparece como ficção, naturalmente. É de se supor, entretanto, que haja interessados em desvendar o futuro. Bernardo tinha obsessão pelo presente. Chame-se planejamento ou augúrio, o certo é que todos queremos antever e preparar o amanhã. E isso só pode ser feito hoje.

Os institutos de pesquisa de opinião estão sendo instados a revelar seus métodos e bases de amostra. Mas todos eles estão apoiados num pilar que é frágil, móvel e, como estamos no Brasil, ouvindo brasileiros, um pilar cuja base pode trocar de lugar a qualquer momento. Passar da euforia à depressão e vice-versa por "dá cá aquela palha" é marca do caráter nacional. As intenções dos eleitores foram sempre as melhores, ainda quando elegeram Fernando Collor de Mello.

Censura para quê?

Mais problemas pela frente. Os juízes citados podem falar em nome de leitores e eleitores? Os comentaristas, nas colunas de opinião, sim. Estão ali para isso mesmo. Os jornais inscrevem ao alto a vinheta "opinião" para que ninguém seja enganado. No caso de juízes e institutos de pesquisa, porém, estão ressurgindo velhos temas e problemas. A opinião dos autores, por mais relevante que seja, há de ser deixada de lado, sob pena de falsificar sentenças, no primeiro caso, e dados, no segundo. Aliás, as pesquisas de intenção de voto têm algumas discrepâncias sérias no passado, começando pela previsão, quando estrearam, em 1945, de que o brigadeiro Eduardo Gomes venceria o general Eurico Gaspar Dutra. Todos sabem quem se elegeu.

A revista Veja desta semana (edição 1766, 28/8/02) traz matéria sobre as intenções de voto, preocupante já no título: "Qual deles está certo?" O Ibope apresenta Lula com 35%, e Ciro com 26%. No Datafolha, o primeiro tem 37%, e o segundo, 27%. Para o Vox Populi o quadro não é apenas diferente, é contrário aos outros dois, não apenas pelos números, mas pela informação de que Ciro, dado em queda pelos outros dois, está em ascensão.

Para atingir o coração das pessoas, voltemos ao artigo de Vinicius Torres Freire: "É muito duvidoso limitar a liberdade de expressão a não ser em caso de calúnia ou injúria". E ele faz uma pergunta intrigante: "Quem tem o direito de decidir o que é bom, belo e certo o bastante para ser mostrado ao público?"

Um eleitor bem informado vota melhor. A censura é má conselheira, ainda quando autocensura. Quando se começa a adjetivar a liberdade de imprensa, o indício já em si preocupante. "Censura odiosa"? E quem a qualificará? Qual era a intenção da matéria? É do confronto do contraditório que o eleitor faz o seu juízo. Não o subestimemos. Sua Excelência, o Eleitor, apesar de impedido de votar, quando foi às urnas, soube escolher. O que o atrapalhou bastante foi, no Brasil moderno, a silenciosa cumplicidade de nossa mídia com o caçador de marajás de Alagoas. O eleitor foi enganado? Foi. Mas, esclarecido pela mesma mídia que ajudara Fernando Collor a enganá-lo, depôs o presidente. As intenções da mídia naquele ano de 1989 poderiam ser boas, mas o inferno encheu-se delas mais uma vez.

Em 2002, o Brasil tem tudo para evitar a reapresentação daquele
show. Por isso, precisamos de liberdade no horário eleitoral! E censura,
para quê? Quem se candidatou a presidente, que confie no eleitor. Na sua
capacidade de interpretar o candidato calunioso, o candidato cheio de ódio
e vazio de propostas. Nossas elites bem que poderiam perder o medo do povo.
Nos vários nichos ? Judiciário, inclusive ? parecem sempre interessadas
em fazer do cidadão um índio e de nossas instituições
democráticas uma grande Funai. As intenções
podem ser boas, mas delas o inferno está cada dia mais lotado.

(*) Escritor e professor universitário, seus livros mais recentes são o romance Os guerreiros do campo e De onde vêm as palavras; escreve semanalmente no Jornal do Brasil, aos domingos