MEMÓRIA / JULIO MESQUITA
“Há 140 anos, nascia Julio Mesquita”, copyright O Estado de S. Paulo, 18/08/02
“Há exatamente 140 anos nascia em Campinas, no interior de São Paulo, o jornalista e político Julio Mesquita. Ele dirigiu O Estado de S. Paulo entre 1891 e 1927, período em que modelou, com sua combatividade e irredutível fidelidade aos princípios democráticos, o espírito de independência que até hoje norteia a vida do jornal e das outras empresas que compõem o Grupo Estado.
Filho do comerciante Francisco Ferreira de Mesquita e de Maria da Conceição Ferreira Mesquita, ambos de origem portuguesa, Julio Mesquita formou-se em direito no Largo São Francisco, em São Paulo, em 1883. Chegou a iniciar-se na carreira de advogado, mas logo a deixou de lado, atraído por uma vocação maior para a política e o jornalismo.
Foi colaborador de A Gazeta de Campinas e, mais tarde, de A Província de São Paulo, jornal lançado em 1875 com três grandes ideais: a abolição da escravatura, a descentralização do poder e a proclamação da República. Mais tarde, com a queda do regime monárquico, o matutino passou a circular com um novo título, que nunca mais seria alterado, O Estado de S. Paulo.
Desde as primeiras colaborações enviadas para A Província, em 1887, Julio Mesquita se revelou um espírito altamente combativo e um dedicado estudioso das questões públicas. Freqüentemente seus escritos vão mostrar a personalidade de um ensaísta, um cronista político.
Como político, foi vereador em Campinas, secretário do primeiro governo provisório republicano de São Paulo, deputado à Constituinte do Estado, deputado federal e senador estadual. Ele nunca atrelou, porém, a vida do jornal à de qualquer partido, mantendo sua independência. Era sobretudo um homem de imprensa, fiel ao ideário democrático e liberal.
O espírito independente de Julio Mesquita é claramente visível em diferentes momentos da história de São Paulo e do País. Criticou os vícios grosseiros do que se chamava ?política dos governadores?, mostrou os males do caudilhismo, reconheceu os méritos e as tradições preservadas pela monarquia, recomendou o voto livre e a instrução pública como caminho único para o fortalecimento da democracia, integrou-se à campanha civilista de Ruy Barbosa, apoiou o movimento nacionalista de Olavo Bilac, denunciou os métodos de ação das oligarquias, exaltou o idealismo dos 18 heróis do Forte de Copacabana.
Represálias – Essa independência tornou Julio Mesquita um dos jornalistas mais respeitados do País. Seus comentários políticos na seção Notas e Informações – os editoriais, na página 3 – repercutiam e provocavam reações em todos os lugares. Nem sempre, essas reações se coadunavam com a democracia.
Quando criticou o caráter militarista da revolta de 1924, da qual O Estado não participara, Julio Mesquita acabou preso, ao mesmo tempo em que a circulação do jornal era suspensa. Na década anterior, ele havia enfrentado problemas com a poderosa colônia alemã de São Paulo, por ter defendido, desde a primeira hora, o bloco dos Aliados na guerra de 14. Os empresários alemães pararam de anunciar no jornal.
Modernização – Em 1891, ano em que Julio Mesquita assumiu a direção de O Estado, sua circulação era de 18.500 exemplares. Em 1902, quando se tornou o único proprietário do jornal, começou a editar a série de reportagens que mais tarde se transformaria numa das obras fundamentais da literatura brasileira: Os Sertões.
Em 1909, comprou uma nova rotativa, que transformou o diário num dos jornais mais modernos do País e permitiria elevar a circulação para 30 mil exemplares. Em 1916, chegaria a 45 mil.
Em meados da década de 20, os problemas de saúde de Julio Mesquita, que mais de uma vez o levaram a se refugiar na fazenda que havia comprado em Louveira, interior do Estado, se agravaram. Ele morreu no dia 15 de março de 1927, deixando a direção do jornal a Julio de Mesquita Filho, que deu continuidade ao espírito renovador, combativo e independente do pai.
No ano de 1962, entre várias homenagens pelo centenário de nascimento de Julio Mesquita, o então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, inaugurou uma escola com o nome do diretor do Estado. Na ocasião, referiu-se a ele da seguinte maneira: ?Ele foi aquilo que o verdadeiro jornalista tem que ser, aquilo que tem que ser afinal o verdadeiro cidadão: um educador.?
No opinião do escritor e ensaísta Paulo Duarte, que foi ?foca? de Julio Mesquita, uma de suas maiores qualidades era a linguagem impecável e simples que usava nos artigos. As páginas que deixou, segundo o escritor, ?honram a literatura política de qualquer país civilizado?.”
CASO BELO
“Belo causa surto de esquizofrenia na TV”, copyright O Estado de S. Paulo, 18/08/02
“O conflito foi instaurado no Domingão da Globo. Está certo que todo veículo, como manda a cartilha, deve apresentar os dois lados de uma determinada história para demonstrar isenção. A Globo, no entanto, passou das medidas no caso do cantor de pagode Belo.
Há duas semanas, Belo, a vítima, foi homenageado no Domingão do Faustão com toda a pieguice que seu ?drama? podia merecer. Com música (cantada pelo próprio, claro), depoimentos emocionados da namorada (que pôs a mão no fogo pelo rapaz), lágrimas (muitas lágrimas de Belo) e um discurso inflamado de Fausto Silva (alertando para o fato de que ninguém pode ser condenado antes de ser julgado), o Domingão garantiu o seu ibope.
Naquele domingo, Faustão conseguiu ultrapassar o show de Gugu Liberato em 5 pontos (25 x 20 pontos de média no Ibope, na Grande São Paulo). Na verdade, Faustão estava seguindo o script escrito provavelmente pelo advogado e pela gravadora do cantor, uma vez que o artista vinha desfilando por todos os canais misturando pagode e depoimentos sobre seu problema com a Justiça.
Não é que na semana seguinte o personagem que inspirou a solidariedade do Faustão surge no Fantástico, em reportagem exclusiva, como algoz. Na edição de domingo, aparece Belo negociando, por telefone, pares de tênis e tecidos (supostamente codinomes para armas e cocaína) com um traficante carioca.
Enquanto no palco do Domingão Belo foi anjo, no cenário do Fantástico, o cantor foi demônio: alguém que se relaciona com toda intimidade com o crime organizado e ainda coloca sob suspeita (porque cita no bate-papo) colegas de seu métier (da música).
Não se sabe por que só agora – um mês depois de o cantor ter se livrado da prisão – a polícia decidiu divulgar a fita comprometedora (afinal, ela faz parte de um lote). Pode ter sido até uma reação à campanha de restabelecimento de imagem a que Belo vinha se empenhando. Se a tática foi essa, deu resultado porque, na segunda-feira, todos os programas vespertinos – femininos, de fofocas e os policiais – dedicaram boa parte do seu tempo repercutindo a reportagem do Fantástico, com os devidos comentários vazios sobre o mau comportamento do pop star. Não vem ao caso discutir se os interessados na condenação do cantor agiram certo ou não. Esse assunto é da alçada da Justiça.
Merece reflexão, isso sim, a utilização que a TV vem fazendo da ?novela do Belo?. Dependendo da oportunidade, o veículo tem exercitado uma flexibilidade não vista em outros cantos de sua programação. Tem hora que o cantor de pagodes é mártir, tem hora em que aparece como vilão, uma espécie de inimigo público que está fomentando sozinho o tráfico de armas e drogas.
Essa gangorra de emoções confunde o telespectador que, ou chora com Belo injustiçado, ou odeia o pagodeiro, dependendo de como ele é apresentado.
Essa esquizofrenia no tratamento de casos como este compromete o veículo, colocando em xeque a sua credibilidade.”
IDEALISMO SOCIOCOMERCIAL
“Festança em Copacabana”, copyright Jornal do Brasil, 13/08/02
“A imprensa noticiou sábado que o produtor suíço A. J.Crypt, associado a empresários brasileiros, pretende realizar em janeiro um evento para 1,5 milhão de pessoas na Avenida Atlântica. Seus organizadores o definem como um evento de ?idealismo sociocomercial?.
No mundo civilizado, bastaria a publicação dessa notícia para que a Justiça decretasse a prisão preventiva dos implicados. Pois é para isso que serve a prisão preventiva: não para punir, mas para prevenir crimes latentes contra a sociedade.
E há no caso mais que uma ameaça de crime: há o seu anúncio, com dia e hora marcados. Os suíços e seus sócios brasileiros (onde, segundo as notícias, inclui-se a prefeitura) anunciam que na segunda-feira 20 de janeiro, a partir das duas da tarde, o bairro será devastado por mais de 1 milhão de pessoas.
A cidade inteira será refém da ganância de ?idealistas sociocomerciais?, que encherão suas contas bancárias e já estarão se divertindo em alguma cidade ordenada do exterior quando o povo do Rio começar a pagar a conta social, que se arrastará por vários anos.
Se uma ameaça desse porte não provoca reação imediata, é porque a população perdeu a capacidade de se indignar.
Aceitou o fato de que a praça não é do povo mas dos grandes empresários; que os governantes que ele botou no poder têm o direito de vender a degradação de toda uma cidade e da qualidade de vida de sua gente.
O povo abre mão de sua cidadania porque não se reconhece cidadão. Esse reconhecimento, no entanto, não é inato: depende da formação. E quem forma o povo brasileiro não é a família e muito menos a escola: quem o forma, em grande medida, é a televisão.
Quando a responsabilidade social do veículo é discutida, ela o é em função de fatos circunstanciais que simplesmente configuram o espetáculo do dia. Debate-se hoje, por exemplo, se o cantor Belo deveria ou não ter ido ao Faustão.
No fundo isso equivale a saber para quem Raul Gil vai tirar o chapéu ou quem vai ser eliminado no Big Brother.
O que a população faz, nesses casos, é trocar a cidadania pela figuração no universo que a televisão cria para substituir o mundo real.
Sua participação naquele mundo pode ser mensurada pela própria audiência.
Quanto ao mundo que está à sua porta, não há nada que o cidadão possa fazer: ele não está sendo chamado a opinar e não é da sua conta se meter.
É nesse vazio que a esperteza monta as festanças de idealismo sociocomercial e se apossa do espaço público e da ingenuidade de uma população ensinada a votar no Casa dos Artistas e jamais dizer ?não, este é o meu espaço, a minha cidade, o meu bem-estar, o meu dinheiro?.
Não é através dos teletubbies e de tolices afins (que os pedagogos supõem estar entre as suas funções), que a televisão educa. Ela o faz revelando ao homem o seu mundo e fazendo-o senhor dos seus direitos.
Vendo televisão maciçamente e calando-se quando esses direitos são violados, o povo indica que não está sendo educado corretamente.”