JORNALISMO EM CUBA
Mauro Malin, de Havana
"Quero que dentro de uns quarenta anos, no novo século, se possa olhar para trás e dizer: neste século já não existem nem os autocensores, nem os censores, nem os oportunistas, nem os perseguidores. Isso foi coisa do século passado."
Da peça teatral Se vás a comer, espera por Virgilio, de José Milián, estreada em Havana em 1998.
Era uma vez um país onde o ocupante do poder se intitulava comandante-em-chefe. O jornal mais importante publicava manchetes inigualáveis como "Investido el Presidente Noboa com el título de Doctor Honoris Causa" e, também a sério, chamava a Coréia do Norte de "Coréia Democrática". Não é ficção de nuestra America. É Cuba em 2002, às vésperas de comemorar o 44? aniversário da revolução que derrubou o ditador Fulgencio Batista e se engajou na construção do socialismo.
São dez da noite de sexta-feira, 15 de novembro, e Frank Agüero Gómez encerrou a reunião para definir a capa do Granma que circulará durante o final de semana. Afável, paciente, recebe o OI por prestimosa solicitação de Pedro Etchebarne, secretário da Embaixada do Brasil em Havana. O entrevistado é mais dirigente partidário do que editor. O que talvez venha a calhar, já que não se trata de um jornal, no sentido corrente, e sim do "órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba".
"Mas não é o Pravda, nem o L?Humanité", especifica prontamente Gómez. "O Granma foi fundado em outubro de 1965, primeira decisão do congresso no qual se unificaram no PCC as forças organizadas que conduziram o processo revolucionário. Foi fundado com uma nova concepção, como jornal político a serviço da informação da sociedade cubana [a retórica do diretor?geral começa a soar como texto de documento partidário] e dos interesses políticos, econômicos, sociais, culturais e ideológicos majoritários do povo."
Na cabeça do entrevistador, disparam sinais de "dificuldade à vista". A liberdade de imprensa em Cuba é igual a zero. Aqui, um Luiz Inácio Lula da Silva não teria a mais remota possibilidade de chegar democraticamente ao poder. Como fazer a ponte mental entre a experiência brasileira de liberdade de expressão ? submetida apenas, no texto da Constituição, à garantia do direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem ? e esta realidade tão terminantemente oposta?
O contradiscurso ideológico em defesa da democracia como valor universal poderia ser uma tentativa honrosa de contornar as dificuldades, mas não resolveria. Simplificar Cuba é fazer tábula rasa das qualidades de seu povo. Uma visita ao Museu Nacional de Belas Artes, no centro de Havana, é suficiente para reiterar ? como se não bastasse uma notícia mínima de suas virtudes musicais, literárias, cinematográficas, de seu ethos, resumindo ? que Cuba, com seus 110.860 quilômetros quadrados e 11,2 milhões de habitantes, é um fenômeno singular. Faz mais barulho no mundo do que países com o dobro ou o triplo de seu população, ou com território dez vezes maior.
Lula tratado discretamente
Feita por lealdade a declaração de princípios obrigatória ("não posso lhe ocultar que considero seu país uma ditadura, quando mais não fosse pela ausência de imprensa livre e de liberdade partidária") e ouvida a réplica ("é uma democracia, como nós a entendemos"), um tópico da atualidade se impõe.
? Por que o Granma deu até agora tão pouco espaço à vitória de Lula?
"Demos destaque, sim", protesta Frank Agüero Gómez, e busca uma coleção. Exibe a capa do dia 28 de outubro com explicação não muito convincente. "O problema é que a vitória de Lula coincidiu com as eleições das Assembléias Municipais do Poder Popular", diz, quase pensando em voz alta.
O que não tem lógica é que, entre 27 de outubro e 24 de novembro (até onde verifiquei), o jornal tenha dado menos de cinco laudas sobre a vitória de Lula e os preparativos do PT para assumir o governo do Brasil, enquanto, por exemplo, a visita do presidente do Equador, Gustavo Noboa, a caminho de uma reunião na República Dominicana, tenha rendido em cinco dias 12,5 laudas.
A explicação de pessoas que acompanham o processo de perto é que Fidel Castro quer evitar qualquer tipo de ressonância capaz de alimentar o discurso do "eixo do mal" Fidel-Chávez-Lula-guerrilha colombiana, criado por forças de extrema direita do Partido Republicano com influência no governo de George W. Bush. Além disso, as relações entre Fidel e Fernando Henrique Cardoso foram especialíssimas. De todo modo, é ilustrativo esse vazio de notícias impressas sobre a vitória do que o semanário Trabajadores classifica como "partido de esquerda mais numeroso do mundo", com "quase 22 milhões (sic) de filiados".
Frank Agüero Gómez volta à impávida defesa de um povo cubano tomado como instância unitária. Faz completa apologia da política do partido: "Nossa revolução visou obter a independência nacional e em torno dela unir o povo, dentro e fora da Ilha, para construir uma nova sociedade, na base da total soberania, da criação de uma república com todos e para o bem de todos, em que se pratique a justiça social".
Gómez tem 58 anos de idade e dirige o Granma desde 1995. Quando era estudante de Ciências Sociais, começou a trabalhar na revista da juventude Mella (Julio Antonio Mella foi um jovem dirigente marxista cubano morto no México, em 1929), depois passou por Juventud Rebelde, jornal diário que ainda existe, Verde Olivo, revista de assuntos militares fundada pelo Che Guevara, Bastión e o já citado Trabajadores. Terminou uma licenciatura em História e chegou a dar aulas.
O miserê
Para descrever o estado atual das coisas, é inevitável tomar como referência o início do que se chama, em jargão oficial, "período especial", ou a crise que explode em 1990, às vésperas da dissolução da União Soviética, e ainda hoje puxa o país para trás.
O PIB cai 35% entre 1990 e 1994. É o cenário onde se movem os personagens miseráveis de Pedro Juan Gutiérrez (Trilogia Suja de Havana, O Rei de Havana e Animal Tropical, publicados no Brasil e pouco lidos em Cuba ? as edições originais foram feitas em Barcelona). Até então, a mesada dada pela URSS permitia ao país enfrentar o crescentemente despropositado bloqueio americano com resultados sociais consideráveis ? e resultados econômicos pífios, para dizer o mínimo.
Cuba foi obrigada, há quarenta anos, a substituir a dependência de padrões tecnológicos americanos pela dependência da tecnologia de baixa eficiência do socialismo real ? onde o fator mão-de-obra barata, também explorado à vontade em Cuba, antes e depois da revolução, era preponderante. Então, há doze anos, perdeu até isso. Táxis Chevrolet Bel Air dos anos 50 e modelos soviéticos do início dos anos 80, todos mais ou menos caindo aos pedaços, como não podia deixar de ser, ilustram essas sucessivas fraturas.
Na monocultora de cana-de-açúcar, a tecnologia atrasada consumia muita energia, escassa e cara. Enquanto, entre camaradas, o açúcar foi vendido a preços irrealmente altos e o petróleo comprado a preços irrealmente baixos, o barco foi adiante, e Fidel Castro se deu ao luxo de mandar forças expedicionárias, com sacrifícios muito grandes (em todos os sentidos, e mesmo que materialmente tenha havido apoio da União Soviética), para combater na África.
Salvar mais que os dedos
Quando secou a fonte da mesada, produziu-se a queda livre. Mesmo mergulhado em tenebrosa crise, porém, o país não parou de melhorar seus índices em saúde e educação. Dessa cláusula de seu contrato com o povo Fidel sempre cuidou com a maior atenção.
Entre 1962 e 1990, a mortalidade infantil caiu de 41,7 para 10,7 por 1.000 nascidos vivos. E não parou de cair depois. Segundo as estatísticas cubanas, acatadas internacionalmente, baixou em 2000 a 7,2 por mil nascidos vivos (35,2 no Brasil, no mesmo ano). Entretanto, num país em que a prostituição derrubou barreiras, como no capitalismo mais selvagem, a incidência de Aids subiu de 2,6 por 100 mil habitantes, em 1990, para 14,2 por 100 mil, em 1999. Hoje, os dados oficiais apontam cerca de 2.500 pessoas infectadas pelo vírus HIV ? apesar do crescimento, o país das Américas com menor número absoluto de portadores.
A esperança de vida ao nascer, que já era escandinava, esticou um pouquinho mais (74,83 anos em 1994-95). Os suicídios por 100 mil habitantes caíram entre 1990 e 1999 (de 20,4 para 18,3) e os homicídios, também (de 6,8 para 5,5, depois de terem chegado a 8,2 em 1994; a média brasileira, que esconde grandes desigualdades entre regiões, já anda em torno de 25 por 100 mil e só aumenta). Essa pode ser uma das explicações para o fato de que andar pelas ruas de Havana ? e, relatam viajantes, das outras cidades do país ?, a qualquer hora, não dá medo. A pobreza entristece, mas há um grau de controle social que muitos, de Chicago a Buenos Aires, invejariam.
O índice de analfabetismo está em pouco mais de 3%, um dos menores do mundo. Estudantes cubanos fazem bonito em avaliações de aprendizado. O país quer reduzir de 35 para 22, em dois anos, o número médio de alunos em sala de aula. Acabam de ser criadas 779 escolas primárias. Aparelhos de televisão e computadores entram nas escolas. Nem tudo são flores: enfrentou-se recentemente um déficit de 8 mil professores ? uma parte deles abandonou o magistério para ganhar alguma coisa em moeda forte.
Para Frank Agüero Gómez, Cuba não teve escolha. A hostilidade americana, que provocou sua expulsão da OEA e seu isolamento no contexto latino-americano, a obrigou a buscar amparo, caso contrário não sobreviveria. "Foi a antiga União Soviética que deu apoio", agradece, ainda hoje, a solidariedade já perdida. "Chegou a absorver 85% da produção econômica cubana destinada ao exterior. E Cuba chegou a depender em 90% de importações do campo socialista. Houve momentos em que os governos americanos afrouxaram o bloqueio e as coisas melhoraram um pouco, mas a crise, quando veio, foi muito difícil."
A defesa do regime volta à superfície: "Olhamos para países vizinhos onde há partidos políticos, eleições, imprensa plural, países que podem receber livremente remessas de divisas de trabalhadores que emigraram para os Estados Unidos, e perguntamos que vantagem tiveram, se não resolveram nenhum problema social?"
Bússola sem norte
No registro histórico, o barco que deu nome ao jornal saiu do México em fins de 1956 para a tomada do poder, em 1? de janeiro de 1959. No plano metafórico, o piloto, hoje comandante-em-chefe (e também presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros da República de Cuba), feita a revolução, deixou a margem do rio com destino cada vez mais ignorado. Não há retorno possível, nem os passageiros parecem desejá-lo ? ditadura, sim, mas com uma dose notável de consenso ?, e a bússola do "marxismo-leninismo", método invocado pelo compenetrado Gómez, ficou sem norte em algum ponto do trajeto. Manobrar o barco em meio à crise aberta em 1990, isso, sim, foi coisa de mestre. É verdade que, politicamente, o bloqueio obtuso ajudou.
Em todo caso, há que reconhecer a limitação dos instrumentos disponíveis para entender e avaliar a experiência cubana, porque a vocalização a respeito de sua realidade foi feita principalmente por dois pólos antagônicos inconfiáveis e obscurantistas: o da oposição sem quartel e o da defesa irrestrita. Difícil encontrar quem procure compreender, mais do que explicar. Jornalistas sérios que vêm de fora, americanos inclusive, às vezes o fazem.
Os efeitos da crise ainda roem os ossos da imprensa oficial cubana. Em meados de 1990, recapitula Gómez, o Granma tinha 16 páginas, o dobro das 8 de agora, e tiragem de 700 mil exemplares. Havia quatro jornais diários e mais um em cada uma das 14 províncias fora da capital, com tiragem somada de 1,6 milhão de exemplares.
"Baixamos tudo para um quarto disso. Só um diário" ? diz, esquecendo-se de Juventud Rebelde, que de todo modo não se encontra com facilidade ? "e a circulação do Granma chegou a cair a 400 mil exemplares. Agora estamos com cerca de 500 mil, dos quais 180 mil distribuídos em Havana [o jornal custa 20 centavos de peso; um dólar valia 26 pesos cubanos na primeira quinzena de novembro]. Temos cerca de 45% de assinantes."
Papel falta também para fazer livros. Cuba atingiu 50 milhões de exemplares por ano e chegou a cair até 5 milhões, em anos mais cabeludos, relatou Fidel em abril, ao inaugurar uma nova gráfica em Havana.
Ouvidos e olhos
Aumentou a importância do rádio, de tradição antiga, mas calcada na música e na novela. Já há 69 emissoras, todas oficiais, claro, que somam 1.126 horas diárias de transmissão. O dobro do que havia antes da crise.
"Boa parte dos jornalistas dispensados foi para o rádio", conta Frank Agüero Gómez. "Alguns mudaram de ramo, foram para o turismo, para empresas comerciais. Seja como for, nunca houve muitos jornalistas em Cuba. Hoje, passam um pouco de 3 mil."
Os ouvidos, tanto quanto os olhos, são alcançados também pela televisão, que, diz Gómez, começou a se desenvolver em 1999, quando foi substituída a tecnologia de seus primórdios no país, analógica e em preto e branco. Foram gastos 20 milhões de dólares, cifra modestíssima quando se pensa nos bilhões da crise financeira da mídia brasileira, mas expressiva em Cuba.
A idéia de que os meios de comunicação são uma projeção do governo e desempenham, portanto, um papel na educação do povo fica mais realçada quando o diretor-geral do Granma passa a proclamar, orgulhosamente, que Cuba já tem quase um computador por escola e introduziu o ensino obrigatório de computação.
"Melhorar as bases da educação nacional é uma maneira de enfrentar o problema das desigualdades que surgem quando quase 1 milhão de pessoas, empregadas em atividades remuneradas em divisas, recebem trinta, quarenta, cinqüenta, sessenta vezes mais do que a média dos trabalhadores cubanos", acredita Gómez. "Trata-se de aumentar as possibilidades de se desfrutar do direito à igualdade. Aplicar uma política de maior justiça social impede que as diferenças de remuneração se convertam em diferenças de acesso à cultura e ao desenvolvimento."
? Como a percepção das desigualdades afeta o cubano comum?
"Uns têm conhecimento suficiente para compreender o que está acontecendo", explica Gómez. "Ao mesmo tempo, a sociedade cubana busca seu aperfeiçoamento a partir de uma base comum a todos os cidadãos. A pessoa pensa: ?É suportável, porque eu não freqüento paladares? [restaurantes mais ou menos domésticos que cobram em dólares]."
Obrigado, não
Do afloramento de diferenças sociais ostensivas a conversa desliza para a corrupção.
"Há uma caricatura de corrupção", afirma Gómez, na contramão de pesquisas recentes que situam Cuba em patamar semelhante ao do Brasil. "Ministros, diretores de grandes empresas, funcionários vinculados a comércio exterior e finanças não são corruptos. Há mecanismos de detecção que funcionam bem. A diferença de salário entre um ministro e um operário qualificado é de 600 para cerca de 250 pesos. O ministro tem automóvel à disposição e come mais no trabalho do que em casa, certo. Mas ele e sua família vão para os mesmos hospitais usados pela família do trabalhador, as mesmas escolas, os mesmos centros de recreação."
? Já lhe ocorreu mandar fazer uma reportagem sobre essas diferenças de padrão de vida?
"Não. Não é necessário. Existe um nível muito grande de censura social. Todos vivemos de portas abertas para os vizinhos. Qualquer mudança de padrão de vida é imediatamente percebida." (A reação mostra que o diretor-geral do Granma não pensou em descrição de fatos, mas em denúncia.)
A falta de entusiasmo pela reportagem jornalística tem, entretanto, brechas.
Recentemente trouxeram-lhe um relato sobre um ônibus que recolheu só 15 dos muitos mais passageiros organizados em fila no ponto, no bairro do Vedado. As pessoas ficaram irritadas, escreveu o jornalista, o ônibus tinha levado 50 minutos para chegar, mas entenderam que era uma providência em benefício de todos, porque assim poderiam subir outros tantos na próxima parada. Cinco metros adiante, descaradamente, o motorista parou o ônibus e pegou sete pessoas que não tinham entrado na fila. O autor do relato não disse, mas qualquer um entende que os privilegiados molharam a mão do motorista.
"Honestamente, achei que não era algo que merecesse publicação no Granma", admite Gómez. "Seria como dar tiro de canhão para matar passarinho, me pareceu. Mas acabei concordando e, para minha surpresa, a matéria, publicada na página 3 [12/11/02] fez sucesso."
Três dias depois, no mesmo espaço, o jornalista noticiava a visita à redação do diretor da Empresa de Ônibus Urbanos da Cidade de Havana, que relatou o afastamento do motorista, falou da dificuldade que é prestar com 600 ônibus, em todo o país, um serviço que na década de 80 empregava 2.000 veículos, e deixou três telefones para reclamações e denúncias.
? Que tal investir mais nessa linha de prestação de serviços à população? Mesmo num sistema de planificação totalmente centralizada, dispor de mais vozes, de mais visões, não seria uma ferramenta útil?
"Sim, talvez, sua hipótese eventualmente poderia, quem sabe, fazer sentido", concede parcimoniosamente o diretor-geral do Granma, que logo atalha, na senda do paternalismo: "Na verdade, para cada caso publicado o jornal recebe dez denúncias que se resolvem diretamente com as respectivas autoridades."
Quando chegar a hora
Falar de jornalismo, no sentido mais corriqueiro da palavra, abre o apetite do entrevistador.
? Por favor, não se ofenda com a pergunta, que tem a ver com a rotina de qualquer jornal: já está pronto o material para a edição em que se vai noticiar a morte de Fidel?
"Sim, está pronto", responde Frank Agüero Gómez, após uma fração de segundo de hesitação.
? O senhor tem medo do que acontecerá nesse momento?
O teor da resposta coincide com a de praticamente todas as pessoas ouvidas antes, à exceção de um taxista de Mercedes Benz que disse que tinha medo, sim, porque "quem ficou esse tempo todo apanhando vai querer bater":
"Não, não tenho medo", diz Gómez. "Uma sociedade, um povo que passou por 43 anos de verdadeira guerra contra Cuba não tem por que ter medo. Fidel é o símbolo, é o dirigente máximo, a maior autoridade moral, mas a sociedade tem mecanismos de direção, mecanismos de renovação na base de princípios, e está politicamente unida. Se estivesse desunida, seria complicado."
? Já que falamos em situações-limite, imagina o fim do bloqueio americano, mais uma vez condenado na ONU por esmagadora maioria?
"O bloqueio é algo que vai desmoronando, não cairá de uma vez", prevê. "Se não houvesse a lei Helms-Burton [de 1996], já teria acabado. Curioso é que o bloqueio é legalmente mais limitante para os cidadãos americanos do que para os cubanos. Uma espécie de punição interna."
De fato, é provável que, devido a diferentes fatores, cubanos saibam bem mais sobre os Estados Unidos do que americanos sobre Cuba. Mas não há comparação entre os prejuízos sociais para os dois povos.
Uma das conseqüências sociopolíticas mais pesadas do bloqueio é inibir a expansão da internet em Cuba, onde há no momento cerca de 100 mil usuários, segundo as contas do diretor-geral. "É um ótimo meio para distribuir notícias sem despesas com papel e tinta, como o rádio", anima-se. "Só na cidade de Havana já há 533 sites", contabiliza.
? E a participação dos cidadãos na rede, como se dá?
O diretor-geral do Granma não precisa entrar no terreno espinhoso da censura, ou da repressão:
"Quem tem acesso, tem liberdade, pode usar todos os recursos. O problema é que poucos têm acesso. A maior dificuldade é o custo alto da telefonia, devido ao bloqueio, que torna caro o provimento de acesso. São 60 dólares por mês. Jornalistas, entretanto, pagam 30 pesos cubanos por 40 horas mensais."
Como Cuba não pode usar os canais de empresas americanas, nem para atender a demanda de ligações para os EUA, onde estão milhões de cubanos com parentes na Ilha, demanda que representa a maior parte do tráfego, é obrigada a usar rotas alternativas. E cada intermediário tira sua casquinha, o que encarece muito o serviço. Dois minutos de ligação feita num hotel para o Brasil custam 15 dólares.
Entre os dados e a vida
Os números da telefonia em Cuba são mesmo lamentáveis. Segundo o Banco Mundial, Cuba tinha 44,2 linhas fixas e telefones celulares por 1.000 habitantes no ano 2000. O Brasil, que ainda não é nada brilhante, devido principalmente ao baixo poder aquisitivo de amplas faixas de sua população, tinha 318 por 1.000. A China, que até recentemente recenseava 75% da população no campo, contava com 177,6 por 1.000. A pobre República Dominicana já chegara a 187 por 1.000.
Em companhia de Cuba aparecia na estatística, por exemplo, a Coréia do Norte (45,7 por 1.000). Um estudo publicado na França nos anos 80 constatou que não havia ditaduras em países com pelo menos 100 telefones por 1.000 habitantes. E isso foi bem antes do advento da internet. Quando Gorbachev chegou ao poder na então União Soviética, em 1985, o país estava atingindo esse patamar (em 2000, a Federação Russa alcançou 240 linhas e telefones celulares por 1.000 habitantes, em parte graças ao descarte, na conta, da população de várias antigas regiões pobres).
Cuba tem, na hipótese mais cética, o álibi quase perfeito do bloqueio americano. Por enquanto, não dá para esperar grandes avanços na internet.
Em todo caso, o Granma está presente na rede <www.granma.cubaweb.cu> desde 1996.
"Temos duas edições diárias impressas e uma digital", diz Frank Agüero Gómez. "Semanalmente, imprimimos quatro edições internacionais, em espanhol, inglês, francês e português. Mensalmente, uma edição em alemão. Essas edições internacionais estão em cinco sites na internet. Para fazer tudo isso, e manter correspondentes em todo o país, empregamos menos de 300 pessoas, das quais cerca de 1/3 são jornalistas", orgulha?se.
Fidel Castro, que com alguma freqüência decide pessoalmente o que vai ou não sair no jornal, e com seu senso de espetáculo mantém o jornalismo recalcado, tem o dom da palavra. É um dos oradores mais bem-sucedidos do século 20. Em suas falas, que o Granma reproduz sistematicamente há 38 anos, nunca faltam dados atualizados e tantas vezes minuciosos.
Mas os dados, como se sabe, tanto mostram como escondem a realidade.
Um dia o povo cubano acordará com urgência de um jornalismo que informe o que há entre as estatísticas e o ronco das coisas. E o terá, que os cubanos não são menos competentes do que ninguém. Como diz o Manu Chao em …Próxima estación… Esperanza, "this hypocrisy is an emergency".
A cogitação sobre o despertar do jornalismo cubano ficará para depois. Está mais do que na hora de deixar Frank Agüero Gómez encerrar o expediente e voltar para casa. Ganho um exemplar da primeira rodada do jornal, destinada às províncias. Vinte para uma da manhã de sábado, 16 de novembro. Ao sair da sala ampla do diretor-geral, dou uma olhada na redação, antes de despedir-me e descer para pegar um táxi, perto da Praça da Revolução.
É uma redação pobre, com a mesma arquitetura e o mesmo mobiliário das redações da década de 80, e na qual todo o aparato tecnológico consiste na informatização básica ? e na indefectível televisão ligada. Vejo a turminha do plantão, dentro de dois ou três "aquários": plantonistas, edição digital, um dos subeditores, sentado à parte. São jornalistas? São militantes? Seja qual for a resposta, a última mirada para o grupo, que vai ralar até três da manhã, faz repontar sentimentos de uma certa identidade, na contramão das convicções mais categóricas.