Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Olavo de Carvalho

JORNALISMO & IDEOLOGIA

"Diagnóstico", copyright O Globo, 17/11/01

"Jean-Sévillia, em ?Le térrorisme intellectuel de 1945 à nos jours? (Paris, Perrin, 2000), apresenta o seguinte quadro da hegemonia esquerdista nos meios de comunicação franceses:

?A censura acabou? Não. Ela mudou de natureza. Num país eleitoralmente partilhado meio a meio entre esquerda e direita, as eleições sindicais mostram que 80% dos jornalistas dão seus votos às organizações de esquerda… Fatalmente esse desequilíbrio se faz sentir na mídia. A escolha dos assuntos, o modo de tratamento, as personalidades convidadas correspondem à orientação predominante nas redações.?

Esse diagnóstico do redator-chefe do ?Figaro Magazine? poderia aplicar-se igualmente ao Brasil, se não fosse por um detalhe: nos sindicatos da classe, não são 80% os jornalistas que votam à esquerda. São 100%. Nas eleições não há nem mesmo chapas de direita. Na mais pluralista das hipóteses, aparecem duas de esquerda.

Idêntica homogeneidade, só em Cuba. E ainda há quem se recuse a crer que algo de anormal e tenebroso acontece no jornalismo brasileiro. Mas ninguém, neste país, publicaria um livro como ?Le térrorisme intellectuel? e continuaria redator-chefe de um grande semanário. Justamente porque a situação local é muito mais grave e opressiva que na França, a possibilidade de discuti-la com liberdade é incomparavelmente menor. Aqui, mal se tolera algum anticomunista na página de opiniões, perdido e invisível entre dezenas de esquerdistas. No comando, sua presença seria denunciada como perigo fascista: ele não duraria uma semana no cargo. Quanto mais vasto o poder da casta dominante, mais ela enxerga como ameaça insuportável qualquer detalhe que a contrarie.

Também o modus operandi do controle ideológico é diferente na França e no Brasil. Lá, diz Sévillia, ?o fenômeno não obedece nem a uma linha oficial, nem a instruções ocultas, nem a uma estratégia organizada: ele provém do consenso reinante num microcosmo?. Aqui, embora o efeito geral conte também com o infalível automatismo do consenso, certamente os 800 jornalistas que a CUT confessa ter na sua folha de pagamento não são deixados sem instruções quanto ao que devem escrever ou omitir. Não obstante constitua talvez a maior compra de consciências já observada na história do jornalismo mundial, a presença desse exército de ?agentes de influência? é aceita nas redações com a maior tranqüilidade, sem que ninguém sinta abalada sua boa consciência de fiscal da moralidade pública. É que o esquerdismo mais estrito se tornou, nesse ambiente, uma espécie de lei natural, corriqueira e improblemática como a rotação da terra ou a fisiologia da respiração. Como num meio ideologicamente homogêneo todos estão em família, a mais dogmática intolerância pode aí subsistir numa atmosfera amigável onde ninguém se sinta pressionado ou intimidado. É claro: quem poderia sentir-se assim está longe. E o traço mais típico da mentalidade intolerante é não saber que é intolerante: ela exclui do seu horizonte visível todos os que não tolera, e então se acha muito tolerante porque tolera os demais.

Somem aos homens da CUT os ativistas partidários e a colaboração espontânea de ?companheiros de viagem?, oportunistas e idiotas em geral, e terão a precisa distribuição de espaços vigente na mídia nacional: páginas noticiosas integralmente pautadas pela esquerda, cadernos de cultura e show business dedicados por inteiro à glamourização de estrelas ativistas, colunas e mais colunas assinadas por ídolos do esquerdismo letrado, empenhados em dar ares de dignidade intelectual a uma filosofia de cabos eleitorais.

O que possa restar de não-esquerdismo encontra abrigo nos editoriais, que a massa não lê, bem como em um ou outro artigo assinado, quase sempre de autores estranhos ao meio jornalístico – professores, técnicos, empresários – que se atêm em geral a uma polidíssima defesa da economia de mercado, sem jamais atacar de frente o bom nome da linda ideologia cujos crimes acabam sempre absolvidos, paternalmente, como efusões de idealismo juvenil. Anticomunismo explícito, nem pensar. Investidas frontais como aquelas que a esquerda faz contra as Forças Armadas, contra a moral religiosa e contra as pessoas de seus desafetos, nem pensar. Investigações escandalosas, nem pensar. Até na linguagem o desequilíbrio é evidente: de um lado, insultos, vituperações, imputações criminais. De outro, recatadas ponderações acadêmicas e trêmulos apelos ao ?diálogo?. No máximo, tapas com luvas de pelica na ?esquerda burra?, como se o maior pecado de Stalin, Fidel ou Pol-Pot fosse a burrice.

De tal modo as idéias conservadoras desapareceram da mídia, que o público, ignorando-as por completo, não pode dar pela sua falta, e cai como um pato no engodo de chamar de ?direita? a ala tucana e peemedebista imperante – a fina flor da oposição de esquerda no período militar – cuja elevação ao poder permitiu que se consolidasse a vitória suprema da hegemonia gramsciana: fazer com que o debate interno da esquerda usurpasse todo o espaço do debate nacional, excluindo por inexpressáveis, impensáveis e por fim inexistentes todas as demais opiniões possíveis. Hoje não há mais democracia no Brasil exceto a ?democracia interna?, o ?centralismo democrático? do velho Partidão, onde a única direita admissível é a direita da esquerda: a social-democracia, o reformismo, a tucanidade enfim. O que quer que esteja à direita disso é fascismo. E, como tal, proibido.

Esporádicas e aparentes ?viradas à direita?, em situações específicas nas quais o esquerdismo ostensivo arriscaria pegar mal, só servem para dar redobrado vigor ao discurso esquerdista quando, investido da superior autoridade de jornalismo idôneo, ele voltar à carga uns dias depois. Assim, a afetação geral de escândalo diante dos ataques de 11 de setembro foi usada para dar respaldo moral à onda de antiamericanismo que se seguiu, incluindo a rotação semântica de 180 graus nos termos ?agressor? e ?terrorista?, que, em uníssono, passaram com a maior naturalidade a designar o país atacado em vez do atacante.

Que de vez em quando se permita ecoar por instantes uma voz de exceção, em protesto inútil contra o estado de coisas, é apenas a quota mínima de risco calculado com que a intolerância vigente anestesia eventuais suspeitas dos leitores, consumando a obra-prima do dirigismo, que é a de fazer-se passar pelo seu contrário. O público, confiado na premissa tácita de que a distribuição das opiniões na mídia reflete mais ou menos o mapa das preferências nacionais, lê o artigo solto e, persuadindo-se ainda mais de que todo anticomunismo é aberração de esquisitões solitários, fica até admirado de que a nossa imprensa seja tão democrática, tão aberta, tão generosa, que chegue ao exagero de dar espaço a um tipo capaz de escrever essas coisas. Muitos chegam a indignar-se com tamanha libertinagem, exigindo a exclusão do intrometido. Não raro, são atendidos. Poucas publicações, como O GLOBO, se recusam a dar ouvidos a essa gente."

 

DIVULGAÇÃO & IMPRENSA

"Onde fui parar", copyright Veja, 21/11/01

"?Passei as últimas três semanas tentando conquistar o apoio da imprensa para um filme que escrevi e ajudei a financiar?

Carlos Alberto Parreira, ex-técnico da seleção brasileira, acha que torcedor não tem opinião própria. É uma mera caixa de ressonância da imprensa. Se a imprensa diz que Malan é o maior ministro da Fazenda do mundo, as pessoas acreditam. Se diz que é o pior, também acreditam. É possível que Parreira esteja enganado. É possível que os outros sejam menos tolos do que ele imagina. Por via das dúvidas, porém, passei as últimas três semanas tentando conquistar o apoio da imprensa para um filme que escrevi e, sobretudo, ajudei a financiar.

É duro vender um produto artístico. Arte não foi feita para ser vendida. Para vendê-la, você se sente no dever de simplificá-la, banalizá-la, reduzi-la. Foi o meu papel na divulgação desse filme. Além de ensinar alguns jornalistas a soletrar ?Mãe de Deus? em latim, fui obrigado a sintetizar em duas linhas os conceitos de um trabalho que exigiu anos de esforço e discussão. As duas linhas não descrevem o filme que fizemos, mas o filme que, em minha cabeça, as pessoas gostariam de comprar, embora eu nunca tenha tido a menor idéia ou o menor interesse em saber o que as pessoas compram.

Pior ainda é partir para o corpo-a-corpo e expor a própria cara em público. Nesse campo, tenho uma razoável experiência. Já passei pelas situações mais humilhantes. Já apresentei um livro numa mesa-redonda de futebol e já participei de um debate numa feira de produtos agrícolas, sendo fotografado ao lado de um trator. Sempre me senti vexado nessas ocasiões. Pensei até em desistir da carreira por causa disso. Agora melhorei bastante. Fui perdendo a vergonha. Aprendi a fazer com uma certa desfaçatez tudo o que parece útil para o meu trabalho. Se acho que pode ser útil promover uma obra no programa de Hebe Camargo, vou ao programa de Hebe Camargo. Se acho que pode ser útil aparecer em colunas sociais ou revistas de celebridades, apareço.

A propósito de colunas sociais e revistas de celebridades, fiquei muito preocupado quando soube que elas cobririam a festa de lançamento de nosso filme. Treinei diante do espelho uma pose especial para elas. A pose comunica que sou um intelectual sério e respeitado, e que só aceitei passar por esse ridículo porque preciso recuperar o capital que investi no filme. Ou seja, finjo estar constrangido mesmo quando não estou. A impressão que quero passar é que o fotógrafo me flagrou no exato instante em que vendia a minha alma, enquanto socializo com celebridades das quais nunca ouvi falar, como Floriano Peixoto ou Angelita Feijó.

Sei perfeitamente que não é salutar para minha imagem ficar borboleteando por programas de TV, colunas sociais e revistas de celebridades, como um camelô, na desesperada tentativa de vender um filme. Mas não há outro jeito. Aceitei investir metade de minhas posses num filme realizado sem dinheiro estatal, com a certeza de que só assim poderíamos manter nossa integridade artística. Agora preciso resgatar o dinheiro para poder continuar a fazer filmes. E me vejo imerso num paradoxo que, com uma pontinha de presunção, resume a melancólica condição do artista contemporâneo: minha integridade artística passa por colunas sociais, revistas de celebridades e Hebe Camargo. Veja só onde fui parar."