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JORNALISMO AMBIENTAL
Mídia negligencia cobertura de assuntos estratégicos
Ulisses Capozoli (*)
A quase obsessiva preocupação com o noticiário político/econômico que caracteriza a imprensa brasileira certamente é a melhor explicação para o desencontro de informações em áreas estratégicas e com efeitos direto (muitas vezes perversos) na economia e na política. É o caso do jornalismo científico como um todo e do ambiental, em particular. Prova disso é o estudo recentemente concluído pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) prevendo um desmatamento de até 42% da Amazônia por volta de 2020.
Um estudo dessa importância não sensibilizou a imprensa, a não ser a Folha de S.Paulo, que entrou antes no assunto. As outras publicações praticamente esnobaram, seguindo o velho costume de ignorar o furo do concorrente. O governo também sapateou, condenou os dados e mais uma vez sugeriu que a participação de pesquisadores estrangeiros no estudo ? que foi publicado pela revista Science ? é parte de uma trama internacional para embaçar a imagem do Brasil.
São posturas ultrapassadas. Tanto a da imprensa quanto a do governo.
Posição responsável, produtiva e ética teve o professor Warwick Kerr, diretor do Inpa, ao defender a integridade do estudo. O pequeno auditório do Inpa, em Manaus, estava lotado no dia 24 de janeiro, segundo a repórter Kátia Brasil, quando o professor reafirmou a previsão, abrindo discussões em torno das limitações metodológicas. O professor Kerr tomou a atitude por apreço às normas científicas. Nada é infalível, nem mesmo a previsão de que o Sol vai nascer amanhã. Uma dia ele não fará isso, mas não sabemos quando isso acontecerá.
O estudo do Inpa fala em desmatamento de até 42%. O governo admite no máximo 8%. Como é possível um desencontro estatístico tão grande?
É um problema de pressupostos, um jogo de situações que encantou o velho Aristóteles.
O Inpa reafirma seus dados e diz que leva em conta tanto a taxa histórica de desmatamento como os efeitos do programa "Avança Brasil", arma de sedução do governo FHC. O governo prefere estatísticas confinadas a certos períodos e contabiliza para baixo os efeitos ambientais de pavimentações de estradas na Amazônia, uma das metas do "Avança Brasil".
Um mínimo de reflexão mostra que a metodologia do Inpa faz sentido. Até porque é uma obrigação profissional que os trabalhos ali produzidos tenham conteúdo científico, busquem refletir uma realidade observável, como sempre recomendou o velho Bacon, e não sirvam tão-somente para gerar fatos políticos.
Olhos eletrônicos
Não é a primeira vez que taxas de desmatamento na Amazônia geram atritos entre pesquisadores científicos e o governo. No final dos anos 80, houve um acalorado bate-boca entre o pessoal do Insituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e as equipes que cuidam da imagem do governo.
Lamentamos todos, mas o governo não tem condições, ao menos técnica, de fazer valer sua lógica. Especialmente porque ela está carregada de conteúdo político.
Para se demonstrar a posição do governo pode-se recorrer a pelo menos dois exemplos e à mão. O primeiro deles é a duplicação da Fernão Dias (BR-381). O outro, a privatização dos parques nacionais.
Numa edição de final de ano, a Folha de S.Paulo mostrou o que todos sabem. A BR-381 tem sua duplicação atrasada em mais que o dobro do tempo previsto e, claro, os custos iniciais já foram multiplicados. Sobre o que a Folha não falou ? e parece não incomodar muito a imprensa ? é o prejuízo ambiental de um atraso desse tipo. Deslizamentos e erosões provocados pelas chuvas, além de ameaçar a segurança de motoristas, causam o assoreamento de rios e pequenos cursos d?água com impacto que ninguém está investigando. Serras desnudas, para retirada de rochas ou cascalho, ficam com seus ferimentos expostos e certamente indignariam o velho mineiro que John Houston mostrou em Tesouro de Sierra Madre.
A Fernão Dias corta o centro do poder político nacional, ligando São Paulo a Belo Horizonte, com conexões para o Rio de Janeiro e Brasília. Se o governo federal não controla nem avalia os danos ambientais de sua duplicação, como se pode esperar que vá fazer isso nas profundezas da Amazônia?
Além disso, o governo anunciou (O Estado de S.Paulo, 18/1/01, pág. A10) a privatização de 16 dos 44 parques nacionais. O que significa isso, além da confissão de incompetência e desinteresse em cuidar dessas reservas estratégicas de biodiversidade?
Bom exemplo é o Parque Nacional da Serra da Canastra, não incluído no que deve ser o primeiro lote de privatizações. Ali nasce o rio São Francisco, "o rio da unidade nacional" não só por correr boa extensão do território, mas por assegurar a sobrevivência de milhões de pessoas às suas margens.
O parque, com uma placa metálica de um metro quadrado imortalizando a inauguração de modestas instalações, em 1995, está abandonado. O nome do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e uma longa lista de autoridades pretensamente responsáveis pela pequena construção (banheiros com chuveiros que não funcionam todos, bancos de alvenaria precisando de reparos e áreas de churrasquear que não acendem suas lâmpadas) ainda não foi ofuscado pela pátina. Mas é parte do passado.
No início deste mês de fevereiro, a empresa privada que faz a limpeza das instalações teve seu contrato vencido e ainda não prorrogado. Os funcionários das portarias se alternam para improvisar numa tarefa que não cabe a eles. Mas só assim os banheiros estão razoavelmente limpos.
O parque tem duas áreas. A baixa, onde corre o São Francisco, depois de precipitar-se por 200 metros, na Casca Danta; e a alta, onde está a nascente do rio. Para se chegar à parte alta, saindo da cidade de São Roque de Minas, é preciso pegar uma estrada de terra esburacada e sem proteção lateral que bordeja precipícios de dezenas de metros. Um acidente dramático pode ocorrer ali a qualquer momento e, se vier a acontecer, certamente não serão encontrados os responsáveis.
Demonstração adicional de negligência inequívoca no parque é a ausência de qualquer proteção para os pedestres que caminham até a base da Casca Danta. A trilha, de terra batida, não oferece qualquer proteção a uma queda que pode ser fatal. Se a burocracia oficial não tem como cuidar da manutenção de um parque entre o norte de São Paulo e o sul de Minas Gerais, novamente próxima aos centros de poder político, por que esperar que seja capaz de vigiar com o cuidado os desmatamentos que historicamente crescem às margens de estradas na Amazônia, formando longas espinhas de peixes aos olhos eletrônicos dos satélites?
Cobertura superada
Diógenes, o cínico, um homem que andava com uma lamparina acesa durante o dia, procurando a verdade, perguntaria por que não se contrata um gerente para administrar o Brasil. Isso facilitaria as coisas, diminuiria as despesas, aumentaria a eficiência e levaria ao máximo a política de privatizações. Privatizações são um dos tabus da imprensa.
Na Amazônia, tudo é mais difícil. Repórteres que eventualmente escrevem sobre a região, mas nunca estiveram lá, muitas vezes não sabem o que falam. Esse é um reflexo da desestruturação interna dos jornais que, 20 anos atrás, tinham editorias bem consolidadas ? como a de Urbanismo, tema que já foi caro à mídia.
O Estado de S.Paulo (11/2/01, pág. A15) anuncia que "contrabando ameaça peixes da Amazônia". Mais uma evidência de falta de controle oficial na região. Mas, nada de novo. No triângulo fronteiriço entre Colômbia e Peru, o contrabando de madeira e peixes, além do trânsito da cocaína, não surpreende ninguém. Nem o Exército nem a Polícia Federal têm eficiência numa estrutura corroída por necessidades imediatas, além de políticos corruptos. Quando a pesca é farta no Brasil, há oscilação no câmbio de moedas em Letícia, na Colômbia, separada por um sonolento posto policial de Tabatinga, no Brasil. É o mercado ditando a velha lei da oferta e da procura.
Talvez a metáfora para a previsão dos dados do Inpa esteja em de Curuçá, na Bahia. Uma placa, na entrada da cidade, anuncia a "Cidade da ararinha-azul". Mas o bichinho delicado não existe mais na Natureza, segundo a edição mais recente de Veja (14/2/01, pág. 81). A ararinha-azul foi extinta, apesar dos esforços de uns poucos interessados na sua sobrevivência.
Durante os governos militares costumava-se apontar os críticos da ocupação dos cerrados como inimigos do país. Ao que tudo indica, esse sentimento autoritário ainda não desapareceu. Nas última décadas, a soja trouxe divisas para o Brasil mas nem por isso diminuiu a dívida externa do país. Mas, em consequência da soja no Brasil Central, inúmeros rios do Pantanal acabaram. Barcos e canoas já não cortam suas águas como antes e a vida farta e diversa também abandonou seus leitos. Quanto custa tudo isso? Esse cálculo, a cobertura imediatista e superada de economia / política não sabe. E nem quer saber.
(*) Jornalista especializado em divulgação de ciência, historiador da ciência e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)
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