Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Opinião pública, esta desconhecida

NÚMERO-NOTÍCIA

Antonio Fernando Beraldo (*)

"Lula sobe e também lidera o 2? turno" (Folha de S.Paulo, quarta-feira, 10/4). No gráfico ao lado da matéria, Lula aparece com 31% das intenções de voto e está ascendendo. José Serra estaciona nos 19%, Anthony Garotinho e a sra. Murad empatados, e a evolução Ciro Gomes é representada numa linha cinza, bem clarinho, com os seus também cinzentos 10%. Vida que segue, e Roseana que não segue, lá vem o Ibope, com mais um pouquinho: Lula com 35%. Acende-se o sinal roxo (pois vermelho é do PT) e é o bastante para os juros continuarem nas alturas, as bolsas despencarem e o dólar saltar! Afinal, o primeiro turno já era, e o segundo turno é liderado com folga pelo pré-candidato do PT ? que, conforme alertam os adversários, fará este país desabar num abismo digno de uma centúria de Nostradamus. O próprio PT se encarrega de dizer que não, não é nada disso, e faz pesquisas qualitativas verificando se o episódio dos sem-terra na hacienda de FHC arranhou a imagem do PT "bonzinho" junto à opinião pública. Opinião pública? De novo?

Imagino que esse negócio de "opinião pública" deve vir desde os tempos da Atenas de Péricles, século 5 a.C. Em tese, todos os homens livres da Ática podiam votar e serem votados na ekklesia, ou Assembléia. Mas como os distritos eram muito distantes, e os cidadãos tinham mais o que fazer, as discussões ficavam por conta de uns dois ou três mil atenienses "da gema" ? que decidiam tudo, desde o preço do azeite até quem seria mandado para um "honroso exílio" (ostracismo). O órgão máximo administrativo, o Conselho dos 500, era formado por sorteio ? vê se pode! ? de uma lista de cidadãos, enviada pelos demos (não os demônios, mas sim os distritos ? daí democracia, governo dos distritos).

Outra coisa: a democracia ateniense não era representativa, ou seja, não havia cidadãos representando cidadãos. Era direta ? não havia partidos, embora já devesse existir o PFL, ainda não com esse nome. Cada um que votava, votava por si. Então, tirando as mulheres, os servos, os escravos, os homens de menos de 30 anos, os estrangeiros e os poetas, ficamos com 0,3 % dos gregos "com opinião". Nunca mais tivemos algo nem perto disso.

Depois que Roma promoveu a primeira globalização, o mundo ficou muito grande e representado por cada vez menos gente. Apesar de, nos estandartes, apregoar-se o partidão SPQR (Senado e Povo Romano, nesta ordem), o poder mesmo era dos patrícios, que se lixavam para o resto. Depois veio a Idade Média, o feudalismo, mais a Igreja Católica e as invasões dos bárbaros (o MST da Europa). A tal de opinião pública, se existia, nem era cogitada. Em seguida, os reis absolutistas e os déspotas esclarecidos se encarregaram de tocar o barco sozinhos. Os quase-republicanos ingleses do século 17, depois que separaram a real cabeça de Carlos I do real corpo do retrocitado, tiveram muito trabalho em fazer prevalecer a sua opinião, tendo que, para isso, promover uma diáspora na Irlanda e arrebentar com os escoceses. Não deu certo, havia muita opinião pública contra este interregnum, e os ingleses logo, logo, restauraram a monarquia e foram felizes para sempre. Segundo o institutuo NOP, apenas 12% dos britânicos desejam o fim da monarquia. Detalhe: a pesquisa foi feita no fim-de-semana logo após a morte de querida rainha-mãe (Folha, 10/4). Vale?

Vento imaginário

A opinião pública só volta a mostrar sua força muitos anos depois de Cromwell, quando chegaram os dias de glória, e um bando de citoyens botou abaixo as torres da Bastilha, numa façanha de desengenharia digna de um Bin Laden. Divididos em uma dúzia de opiniões, os jacobinos, os girondinos, a montanha e a planície e outros eram jogados de um lado para o outro pelo enxame de panfletos, tablóides e jornais diários que açulavam os ânimos do peuple, cujos amis acabaram vítimas do próprio veneno ? os artigos nos jornais. A expressão "quarto poder", atribuída à imprensa, nasceu nesta época.

Duzentos anos se passaram e esta entidade misteriosa ? o povo quer! ? ainda é invocada a toda hora para justificar as maiores barbaridades. Repare no que está acontecendo no Oriente Médio: os soldados israelenses cometem uma série interminável de atrocidades contra palestinos encurralados em campos de concentração (que tal darmos o nome correto?); os terroristas palestinos, por sua vez, se explodem no meio de gente que não tem nada a ver com isso. O presidente George Dábliu Bush, num dia, manda que os exércitos judeus saiam "imediatamente" dos territórios ocupados; dia seguinte, solicita que, caso não lhes seja incômodo, comecem uma retirada (ou coisa parecida) e manda seu general-secretário Colin Powell numa lenta romaria até Jerusalém, para tentar botar ordem na casa; mais uns dias, rotula o sr. Sharon de "homem da paz".

Será que o estadista Bush Filho "refletiu melhor" ou será que ouviu a voz rouca das ruas? Segundo o instituto Gallup, mais da metade (53%) dos americanos acha a guerra contra os palestinos "legítima", e 67% dos nossos irmãos do norte aprovam a posição dos EUA (qual delas?). Anos atrás, havia uma tal de silent majority, que, dizia-se, era a favor da guerra do Vietnã e contra a liberação dos direitos civis para os negros, entre outras coisas. Mesmo silenciosa, esta maioria era invocada toda vez que as marchas pela paz e pelos direitos dos negros enchiam as ruas de Washington. Depois descobriu-se que esta "grande maioria" (perdão) não existia; ou, se existia, tinha deixado de ser maioria ou tinha mudado de idéia.

O que venho dizendo há anos neste Observatório é que não existe este negócio denominado "opinião pública" ? uma espécie de divindade onisciente, que responde uníssona a todas as grandes interrogações da vida nacional. Existem, sim, opiniões públicas, emitidas por grupos de pessoas, teoricamente segundo seus próprios interesses e necessidades. Essas opiniões são tremendamente instáveis, caprichosas mesmo. Flutuam ao vento das versões dos fatos, ao sabor das habilidades da propaganda política. Enquanto nas cidades menores o rádio e a TV fazem a festa, nas grandes cidades a guerra cresce nos outdoors, nos jornais e nas revistas. Uma frase bem colocada de um "formador de opinião" é capaz de provocar um estrago imenso na imagem de um político que levou muito tempo e gastou muito dinheiro para ser construída.

E que dinheiro! Segundo uma reportagem do Globo (22/4), estima-se o gasto de 5 bilhões de reais em tudo quanto é tipo de badulaque na campanha deste ano, de camisetas a pregadores de roupa. Segundo o professor Gaudêncio Torquato, responsável pelo estudo, essa grana toda poderia ser até maior, não fosse o episódio da sra. Roseana. Mesmo assim, diz, uma campanha para presidente não sai por menos de 70 milhões de reais.

Enquanto escrevo, à noite, um grupinho de meninas brinca na rua lá fora. A mais velha não deve ter 8 anos. Oscilam os corpinhos ao ritmo da música que vem da TV, as barriguinhas de fora, os bracinhos alisando um vento imaginário, na coreografia aprendida na novela. Imitam a moderna(?) SheraJade, incorporados todos os trejeitos de uma sensualidade imprecisa, ensaiada… Não fazem a menor idéia do que seja clonagem, adultério, choque de culturas e de religiões, poligamia, guerra entre árabes e judeus, essas coisas. Mas já repetem as expressões marteladas pela novela, os bordões numa língua estranha mas facilmente assimilável. Alguém chama de volta pra casa, as meninas se despedem: inshallah. É isso aí.

(*) Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora

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