NOME AOS BOIS
Deonísio da Silva (*)
Tremenda injustiça perpetramos contra os animais aos utilizá-los para ofender nossos semelhantes. A anta, o cachorro, o gambá, a vaca ? e seu marido, o boi ? além dos muares, todos deveriam organizar-se, exigindo reparação das calúnias.
A anta, palavra que veio do árabe lamta, pelo espanhol ante, é mamífero sul-americano que pode atingir 1,80 metro de altura e até 2 metros de comprimento. Foi descoberto na América do Sul no alvorecer do século 16. Vive nas matas, nas proximidades de rios e lagoas, é vegetariana, alimentando-se de frutas e folhas. Tem quatro dedos na mão e três no pé, seu peso normal é cerca de 180 quilos, mas algumas chegam a 250 quilos. Aqueles que já lhe foram apresentados, entre os quais alguns caçadores e entendidos, dizem que seu pelo é marrom-escuro, a cauda é muito curta, o nariz lembra a tromba do elefante. Sua gestação dura 14 meses. Talvez a duração da gravidez, uma das maiores entre os mamíferos, tenha servido para engrossar o caldo dos insultos.
É o caso do burro. Do cruzamento do jegue e da égua, ou do cavalo e da jumenta, nascem burros e mulas. E a gestação é mais longa. Por insondáveis motivos inconscientes, achamos que o precoce é mais sagaz. E, por analogia, aquele que demora um pouco mais é falto de inteligência.
A anta antigamente indicava pessoa sagaz, esperta, mas depois o vocábulo passou a sinônimo de tolo, como aconteceu a quem habitava a aldeia, o aldeão. E quem morava na vila, o vilão, serviu para indicar o covarde, a quem o herói sempre vence, porque é mais astucioso do que ele e luta no lado certo no clássico e eterno combate entre o Bem e o Mal.
Narrativas indígenas
Pobrezinha da anta! Boba, ela não é. Mas, com a urbanização do Brasil, caipiras e matutos que conviviam com a anta no meio rural passaram a ser concebidos como incapazes intelectualmente. E para isso quem os ofendia, não se sabe bem por quais razões, passou a associá-los às antas.
Mas a anta, conhecida também como tapir, entre tantos discernimentos na luta pela sobrevivência, foi precursora da engenharia brasileira. Várias de nossas estradas seguiram o traçado de seus caminhos. Aparece no livro Minhas mulheres e meus homens um diálogo que o escritor Mario Prata travou com o filho, Antonio:
"Fiz uma besteira qualquer e ele, com sete anos:
? Pai, você é uma anta!
Fiquei olhando praquele pirralho.
? Ah, é? E filho de anta, o que é?
Pensou dois segundos e respondeu:
?Antonio!"
O vaidoso urubu sucumbe ao elogio da esperta raposa. Ela quer que ele solte um queijo que traz no bico e para isso se derrama em falsas admirações, dizendo que o canto do compadre é uma maravilha. Ao abrir o bico, o queijo cai e a raposa, parente do gambá (outro injustiçado, utilizado para xingar o bêbado), se manda sem sequer disfarçar que vai ouvi-lo. Já o jabuti é concebido como animal esperto, que engana a onça.
Nas origens dessas comparações estão as complexas narrativas indígenas, associadas a fábulas européias, em que inteligência e esperteza aparecem como se fossem a mesma coisa.
(*) Escritor e professor universitário, autor de Teresa e de A Vida Íntima das Palavras